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Crónicas

Os dias do vírus (X, e último)

Findo o confinamento, dois madeirenses retomam, numa manhã de Primavera, o hábito do café no centro do Funchal.

- Mê cride! Ao tempo.

- Esquece, estes meses pareceram anos.

- Tinha saudades das nossas onze e meia.

- Tamém eu, mê cride, tamém eu. Mas tinha mais saudades de não estar com a minha mulher.

- Rebentou-te a cabeça?

- Credo! Meu cunhado, o Vítor...

- O da oficina?

- Sim, esse louco. Passava a vida nos carros e nos ralis. Dia todo no chão e no meio do povo. Óleo nas mãos, na cara, nos ouvidos se fosse preciso. Desde que rebentou o Covid que não sai de casa.

- Dona Lurdes não é doente de risco?

- Sim, minha sogra é doente de risco. Mas esse sacana pegou a mania à mulher, aos filhos, e à Cláudia tamém. Esquece, Dona Lurdes tá melhor que todos eles. Todos os dias acordo e fico de olhos fechados uma hora, só para ter mais um pedacinho de silêncio.

- Famílias é lixado.

- Rapaz, ela pede-me para usar máscara dentro de casa. Passeei todos os dias só para não me desgraçar no vinho e no bagaço. Há dias distraí-me, olhei para o relógio: meia noite, terça-feira, e eu sozinho à beira dos Cimentos Madeira, pronto para ser assaltado.

- Deves ser bonzinho tamém.

- Rapaz, ela deixou secar o canteiro. Em casa o dia todo, a desinfectar sapatos, calças e camisolas, e as flores na varanda jogadas. E eu é que tou louco?

- Olha, pensa positivo. Ao menos é só agora. Eu já tava farto da Patrícia antes do Covid.

Chegam os cafés. Os amigos agitam o saco de açúcar e esmagam, com a colher, o limão da água com gás.

- Ih...olha o Caires!

- O Caires dos estofos?

- Sim, esse louco. Anda feito num Nostradamus do Corona.

- A sério?

- Rapaz, parece que tem uma antena na DGS. Usa daquelas máscaras M3, cada vez que fala parece o Darth Vader.

Caires aproxima-se de bochechas arreganhadas.

- Caires! Mê cride, como é que tu estás?

- IMPECÁVEL.

- Tás convencido com o desconfinamento?

- NA MADEIRA SIM. NO CONTINENTE SÓ VENDO. GAJOS ALDRABAM OS NÚMEROS.

- Não atinas com os eles.

- NÃO SOU EU QUE NÃO ATINO. É A MATEMÁTICA...

Caires explica os básicos da curva exponencial e sigmóide, do achatamento da curva, da imunidade de grupo, e dos acertos das segundas-feiras. Faz um estudo de caso comparativo entre Islândia, Coreia, Reino Unido, Brasil e Suécia, concluindo pela superioridade da Madeira, da Alemanha e da Nova Zelândia. Despede-se com um MAINADA, que o negócio está na merda e está na hora de despachar mesas e sofás.

- O Caires tem boa cabeça.

- Pode ter a cabeça que quiser, mas deve de ir um podre dentro daquela máscara que mete respeito.

- Ah sim! Até derrete o esmalte dos dentes.

À distância, um séquito de políticos aproxima-se, prensando com as solas secas dos sapatos as primeiras flores dos jacarandás.

- Pu... que pariu.

- Então?

- Tá ali o César.

- O da Secretaria?

- Sim, esse louco. Já viste a máscara dele?

- Uma cagança?

- Cagança? Azulinho bandeira, brasão, cruz templária. Desgraçado deve pensar que isto é o Mortal Kombat.

- Não me surpreende nada. Já no Liceu era assim.

- Eish... ele vem aí.

César aproxima-se. Amigos hesitam, inconclusivamente, sobre se devem levantar-se para o cumprimentar. Trocam uns salamaleques indecisos e frouxos, que o ranger da cadeira abafou. César tranquiliza-os com um gesto das mãos, que pousa sobre uma cadeira vazia.

- César! Mê crido! Ao tempo.

- Caríssimos! Estão bons?

- Muito melhor agora! Tínhamos saudades. Pessoas, sol, rua!

Pegando na máscara, que César traz ao bolso do casaco, um deles:

- Mas não tamos tão bem como tu... Sim se-nhô-re! Fazem disto para homem?

- Sim! Não sobrou tecido para uma cuequinha? Uma tanga, os políticos estão sempre a dizer que estão de tanga.

César, envaidecidíssimo:

- Ah homem, estás louco? Vais tocar-me na máscara aqui? Admira de longe como toda a gente.

- César, tenho de te dizer uma coisa, e digo também em nome da Cláudia e da minha sogra, que é doente de risco: muitos parabéns pela forma como estão a lidar com isto.

- Pois é. Dez a zero ao Continente, aos Açores, a toda a gente.

- Clareza. Covid-free.

- Obrigado amigos. Sabem que uma coisa é mandar, outra é liderar.

- Mainada!

- Por falar nisso... é verdade que o Miguel Albuquerque vai candidatar-se a Presidente da República?

- Se é verdade ou não, não sei. A verdade, em Política, muda todos os dias.

Com um sorriso seráfico e dois toques na cadeira, César exonera-se da mesa, avançando para o grupo que verdadeiramente queria cumprimentar.

- A frase lamentável com que se vai embora.

- Nem no Liceu se eu gramava este gajo.

- E ele a fingir que sabia alguma coisa do Miguel Albuquerque? Sabe zero!

- O que achas? Para mim é jogada.

- O que é que não é jogada para esta gente?

- Ah hami, tu percebeste.

- Olha o Alexandre!

- O Babuginha?

- Sim! Esse louco. Deve estar a passar mal com as Vespas e a Barreirinha fechadas Tenho de lhe acenar, que se o chamo nunca mais nos vê. Está surdo que nem uma bola.

Babuginha acena e aproxima-se, sorrindo, com o braço atravessado na viseira do capacete.

- Babuja! Como é que estás?

- Nem me fales. Ando bravo com isto!

- Bravo com quê?

- Com tudo. Isto para mim é uma ficção, distopia completa. Lavaram-nos a cabeça.

Babuginha estica a mão, e enumera.

- Vamos a ver: além de mil e tal mortos com Covid, há um excedente de 4 mil mortos por outras causas. Adiámos milhares de consultas e cirurgias. Temos quase um milhão de trabalhadores em lay-off. Rebentámos com o transporte aéreo. Só em Portugal, temos mais 75 mil desempregados, e outras 50 mil pessoas à porta do Banco Alimentar. Milhares ilegalmente retidos em quarentena. Não convivo, não vou à bola, não saio com uma pequena. Não viajo, não como fora, caem-me reservas e cancelamentos, não me entra um gajo no hotel.

Dizem que é para “salvar vidas”. O caraças que é. É para salvar políticos – como o sacana do César, que apanhei a vir para aqui. No início, percebo que tenha parado tudo. Agora? Agora a minha saúde é minha para arriscar, como sempre foi. E a vossa também, que só estou com quem quero e só está comigo quem quer. E não me venham com a conversa dos velhos e dos grupos de risco. Protejam-nos, cuidem deles, mas deixem-nos arriscar-se também, se quiserem.

Sabem o que é a minha ideia de luxo em 2020? Ao vivo, em directo, cada um por si.

Vou a um curso em Madrid. Vou trabalhar. A um concerto, a um bar, a um restaurante ou a uma discoteca, e quem lá vai e quem lá está sabe ao que vai e onde está. Vou misturar-me, vou fazer desporto, vou tomar copos, e vou à praia – pertinho de quem quiser estar ao meu pé, aventurando-nos como quem aceita andar na mesma mota. O Estado quer-me descontaminado de Covid como me quer sem fumo, sem açúcar, sem sal. O Estado taxa, proíbe, priva-me do vício porque precisa que eu esteja ao serviço do SNS, e não que o SNS esteja ao meu serviço. Julga que a minha liberdade, deixada à solta, é uma coisa perigosa, que expõe os esqueletos do nosso desinvestimento e atraso. Mal por mal, o Estado prefere o meu mal ao dele. E a gente alinha e agradece. A pensar assim, meus queridos, nem ao Porto Santo nos deixam ir. E nesse dia – garanto – o Babuja pega em armas.

- OK Babuginha. Sabes o que é que fazes?

- O quê?

- Vais hoje jantar lá a casa. E tens essa conversa com a minha mulher.

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