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Às carrinhas de metadona em Lisboa começam a chegar presos recém-libertados

Foto ANDRÉ KOSTERS/LUSA
Foto ANDRÉ KOSTERS/LUSA

O tráfico de droga também foi vítima da pandemia e, num mês, o receio da escassez de heroína levou 150 novos utilizadores a recorrer às carrinhas de metadona em Lisboa. Agora, começam também a chegar alguns dos presos libertados.

A carrinha da associação Ares do Pinhal está desde as 10:30 parqueada num estacionamento onde para todos os dias e onde parece não parar mais ninguém, mas há quem precise dela.

Durante uma hora permanece naquele local, entre um viaduto e um descampado, e vai recebendo um vai-e-vem de consumidores de metadona, que aguardam em fila a sua vez para serem atendidos pela enfermeira e receber a sua dose diária, através de um postigo na parte de trás da carrinha.

No alcatrão pintaram-se linhas vermelhas que marcam a distância de segurança para diminuir o risco de contágio de covid-19, respeitadas por todos. A espera, curta, passa-se com cumprimentos, agora de cotovelo com cotovelo ou uma saudação verbal, e breves trocas de palavras com os conhecidos e com o coordenador daquela unidade móvel, o psicólogo Hugo Faria.

Ao contrário do que seria de esperar numa população tão vulnerável, até ao momento registaram apenas três casos suspeitos e nenhuma confirmação de infeção. O protocolo em caso de suspeita é, como em todos os casos, contactar a linha SNS24.

O isolamento a que ficam sujeitos os casos suspeitos não obriga a interromper o programa. A associação garante-lhes entregas de metadona diárias em casa, acontecendo o mesmo se alguém testar positivo para covid-19, explica Hugo Faria à Lusa, enquanto vai deitando um olho ao que se passa à sua volta.

Atrás de si a fila avança num movimento quase mecânico: aguarda-se brevemente, avança-se para a linha vermelha seguinte até se ser o primeiro e recita-se de cor para a enfermeira o número de utente, que dá acesso à dose diária de metadona nas quantidades prescritas. Aceita-se o copo, mistura-se, ou não, água, iogurtes ou outros líquidos, nem sempre lícitos, para diluir a metadona, bebe-se e atira-se o copo para o lixo.

À margem deste movimento, Jorge Gomes era na manhã de terça-feira o único na outra fila, a dos novos utentes. Depois de uma breve conversa com o técnico no interior a carrinha e de um teste de urina para confirmar o consumo de opiáceos, ficou apto a recorrer a um serviço pelo qual já tinha passado há 20 anos, durante um ano, e o qual tinha conseguido abandonar, tal como ao consumo de heroína.

À Lusa explica que, depois de duas décadas em abstinência na Alemanha, onde vive e trabalha, bastaram umas férias em Portugal para se dar o ‘click’ das recordações e dos velhos conhecidos e pôr fim a 20 anos sem consumir.

“É por isso que lhe chamam heroína. Ela ganha sempre”, diz, com um sorriso amargurado, mas convicto de que vai conseguir voltar a vencer o vício e manter-se no programa quando regressar à Alemanha. Jorge Gomes não é, como a maioria das novas entradas ou reentradas no programa, um “efeito colateral” da pandemia.

Pelo telemóvel, Hugo Faria recebe a informação que à outra unidade móvel da associação, que faz o circuito da zona oriental da cidade, já chegaram naquela manhã três novos utentes, todos ex-reclusos acabados de sair em liberdade, eles sim, uma consequência direta da pandemia, com tendência para crescer muito nas próximas semanas, crê o coordenador da equipa.

“Nos últimos dias, praticamente diariamente, têm chegado pessoas que vêm das prisões e que são postas em liberdade em situações de muita vulnerabilidade, em termos sociais e também de consumos”, diz Hugo Faria.

São pessoas que tinham consumos dentro das prisões ou até, e nos casos em que isso é possível, como o Estabelecimento Prisional de Lisboa, pessoas que estavam integradas num programa de metadona na prisão, explica, e que agora saem sem qualquer apoio social.

Em março, desde o início da epidemia em Portugal, chegaram às unidades móveis da associação 150 novos utilizadores, entre entradas e reentradas, aumentando de forma significativa uma população estabilizada há anos em cerca de 1.200 pessoas que recorrem diariamente às carrinhas de metadona da associação.

“O maior número de afluências é de reentradas, pessoas que já cá estiveram, que já não víamos há imensos anos, que voltam e voltam com medo. Com medo de poderem não conseguir ter uma situação estável em termos de consumo. Têm medo de recair e recorrem a este programa por segurança”, explica.

É, no fundo, uma medida preventiva, consequência de alguma escassez de droga no mercado devido à pandemia, e da quebra nos rendimentos das pessoas em situação mais precária que temem não poder continuar a comprar.

Entre os três ex-reclusos acabados de chegar, um é sem abrigo, grupo particularmente vulnerável que representa 20% dos utilizadores do programa e em função do qual houve um reajuste nos percursos das carrinhas: agora também há um horário específico para o abrigo do Casal Vistoso, no Areeiro, exclusivo para as pessoas que pernoitam neste centro de acolhimento da Câmara Municipal de Lisboa durante este período de emergência.

Se alguma coisa de positivo foi possível retirar da pandemia para este programa foi o reforço das relações institucionais, diz o coordenador da equipa. Hospitais, centros de saúde, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), ou até mesmo a polícia, todos estão agora a trabalhar “muito mais próximos”.

O mesmo em relação à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), com a qual habitualmente coordenam apoios sociais para sem-abrigo - que não estão, apesar da ajuda, a conseguir encontrar lugar nos abrigos, cheios e com lotação reduzida por causa das distâncias exigidas -, mas também para uma “faixa mais vulnerável” de dependentes de subsídios, desempregados ou com trabalhos precários, sem relações familiares estáveis ou redes de apoio, na qual “já se nota muita carência”.

“Nós temos estado nos últimos dias a assistir a coisas a que não assistíamos há muitos anos. Fome, simplesmente fome, pessoas com fome, que é uma coisa que nos incomoda bastante. Aquelas pessoas que conheciam alguém, que faziam um biscate aqui e acolá e que conseguiam manter a sua alimentação, neste momento não a têm. Somos muito sensíveis e articulamos [soluções] com a SCML e, em situações excecionais também providenciamos aqui alguns ‘snacks’ simples. E ainda vamos ver mais [casos]”, diz.

Às 11:30, o atendimento está fechado no Lumiar e regressa à tarde no horário habitual. Todos os pontos de paragem têm dois turnos diários para garantir flexibilidade aos utilizadores, sobretudo aos que trabalham.

Antes de se fazer ao caminho em direção à Praça de Espanha, para o turno de uma hora e meia que começa ao meio-dia, a equipa combina uma paragem na zona de Sete Rios, para descansar e comer qualquer coisa trazida de casa, entre lamentos de já nem haver nada aberto para ir beber um café, ir à casa de banho ou respirar uns instantes.

Demora poucos minutos o trajeto sem trânsito em ruas quase desertas e silenciosas, que denunciam uma Lisboa ainda recolhida em casa.

Quando a carrinha chega à Praça de Espanha já tem uma fila à sua espera. A pandemia, e o medo dela, é ali mais visível. Ao contrário do Lumiar, muitos estão de máscara ou lenços e alguns de luvas. Um utente mais preocupado com as distâncias pede insistentemente a Hugo Faria que alerte para a necessidade de maior espaçamento na fila.

Num turno sem tempos mortos para a equipa, chega a indicação que poderia receber uma nova entrada no programa: mais um recluso recentemente posto em liberdade.

No atendimento, enfermeira e técnico trabalham de luvas, bata e máscara cirúrgica. O coordenador da equipa, que monitoriza, usa apenas máscara. Existem viseiras, produzidas por toxicodependentes na fase final do seu programa de recuperação em comunidade terapêutica, mas apenas as equipas que se deslocam aos hospitais para ir buscar medicação as usam.

A saúde é o outro lado do programa.

“Isto é mais do que um programa de metadona. Estar aqui não é só estar compensado na metadona, é também entrar nos serviços de saúde novamente, porque aqui rastreamos as principais doenças infecciosas e asseguramos as medicações para o VIH, para a tuberculose, que as pessoas tomam aqui diariamente”, explica Hugo Faria.

“Podermos rastrear e tratar aqui doenças como o VIH e a tuberculose garante que o resto da cidade pode estar muito mais segura”, refere.

As unidades móveis têm também alguns dias por semana um médico a fazer atendimento, mas essa possibilidade está agora suspensa em consequência do vírus. A covid-19 obrigou também a colocar mais de metade das pessoas em teletrabalho e as equipas de rua estão numa rotação de 15 dias.

Já no final do turno chega um casal recém-entrado no programa. Depois da metadona recebem da enfermeira duas declarações, uma para cada um, que atestam que estão inscritos e justificam as suas deslocações na rua perante a polícia, em caso de necessidade, uma medida que foi tomada pela Ares do Pinhal para todos os utentes ainda antes de entrar em vigor o estado de emergência.

Um grupo chega em cima da hora de fecho e para além da metadona, pede para desinfetar as mãos, ‘kits’ de injeção, fornecidos gratuitamente, e máscaras de proteção, que a equipa entrega.

A desinfeção do exterior e interior da carrinha dão a manhã por terminada. O recluso recém-libertado não chegou a aparecer. “Talvez venha à tarde”, diz a equipa, que sabe que o mais provável é que nos próximos dias venha a atender muitos mais novos casos semelhantes.

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