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E depois disto tudo...?

Muitos de nós estamos em isolamento.Esta é uma sensação estranha, pois nas nossas vidas procuramos não estar sós, mas em companhia. Mas esta é a nova realidade, inesperada, incontornável, generalizada e implacável da Covid-19.

Se o pico da curva portuguesa só chega no fim de maio, seguindo-se uma descida gradual mas lenta, de modo que este isolamento prolongar-se-á.

Muitos de nós perguntamos, quando isto terminará? De seguida questionamos, o que acontecerá a seguir? Não sei, ninguém saberá.

Mas existem pistas que convém analisar. Tenho a convicção que a Covid-19 não terá só implicações nos vários sistemas de saúde, mas também na economia, na política, na Europa, no Mundo, na estrutura da nossa sociedade e cultura, no ambiente, nas nossas liberdades...

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) mostrou-se, a quem ainda tinha dúvidas, ser indispensável. O seu desinvestimento ficou evidente aos olhos de todos. E também que os seus profissionais constituem a sua mais valia. Quando tudo isto acabar, mesmo não sendo devidamente financiado, ao menos, o SNS (e o SRS) ficará no coração dos portugueses.

A economia congelou e, quando descongelar, não terá a mesma frescura. É expectável desemprego, mas também mudanças duradouras na estrutura económica. Acima de tudo, as empresas experimentarão outras soluções que vieram para ficar. O teletrabalho é uma delas. A agricultura de distribuição global pode ser contrariada com as produções regionais e locais. A necessidade de viagens será questionada. O turismo poderá mudar e até ser reconfigurado, deixando descalços aqueles que apostaram quase toda a estrutura económica neste sector, em especial em zonas distantes dos centros económicos. Sejamos inteligentes e corajosos para minimizar tais contratempos.

Uma pergunta assola o meu espírito, como manter uma sociedade periférica funcionante e economicamente viável, estando fechada ao exterior por muito tempo?

Não me lembro de outro exemplo em que a necessidade de consensos políticos é tão evidente. Com esta pandemia, temos a mesma perceção daquela das alterações climáticas, a da universalidade dos nossos problemas, em que vivemos num único planeta.

A democracia, com as liberdades associadas, em que fica? A monitorização dos cidadãos por câmaras e drones, redes sociais, aplicações e algoritmos, poderão vir a fazer parte do nosso dia a dia. A Covid-19 é um precedente perfeito para que se monitorizem a saúde de cada indivíduo, controlando dados como pressão arterial, temperatura e, já agora, os nossos contactos e decisões. Aceitaremos aquilo que é já imposto aos chineses?

A Europa não ficará igual. Todos percebemos que as fronteiras são ilusórias. Os nacionalismos foram atacados pelo vírus da altivez, e basta ver como o discurso da Liga Norte, do norte da Itália, sucumbiu perante a oferta da solidariedade do resto do país. E qual seria hoje o resultado do Brexit? A Europa, que era um local de liberdade económica e de circulação, será também de partilha de responsabilidades e compromissos, de verdadeira entreajuda, mesmo que com os amuos de alguns.

O Mundo poderá ver alterado o seu eixo, com muito poder e influencia económica a deslocar-se para o oriente, com descrédito dos Estados Unidos, incapazes de liderar pelo exemplo. Um mundo menos dependente do petróleo. Talvez em certa medida menos globalizado. Mais distante, mas também positivamente mais próximo. Como disse Yuval Harari, um vírus na China e um vírus nos EUA não podem trocar dicas sobre como infetar humanos. Mas a China pode ensinar aos EUA muitas lições valiosas sobre o coronavírus. O que um médico italiano descobre em Milão no início da manhã pode muito bem salvar vidas em Teerão à noite. Quando o governo do Reino Unido hesita entre várias políticas, pode obter conselhos dos coreanos que já enfrentaram esse dilema há um mês.

A ciência tem sido tão maltratada pelos populistas deste mundo, neles incluídos alguns cultos, de que o catolicismo sabiamente se soube afastar. Essa mesma ciência desfere agora um golpe fatal nesses mesmos populismos, de que Trump, Bolsonaro, Erdogan, Boris e Maduro são exemplos. Um dos maiores avanços da ciência do século XIX, a microbiologia de Kock e a higiene associada às doenças de Pasteur, que nos ensinaram a importância de lavar as mãos com sabão, tem agora a sua merecida glória mediática, só terminada quando nos prover da tão desejada vacina.

Creio que tínhamos como garantidas coisas que não o estão, e tal poderá mudar a nossa percepção do futuro, em que seremos uma sociedade mais humilde, mas mais unida.

E no fim poderemos escapar a uma tragicomédia pois, como disse Shakespeare, “O passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior”.

Fiquemos em casa, entretanto!

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