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Crónicas

E isto foi perdendo a piada

Se este fosse um sábado normal, eu teria metido a toalha na mochila para um passeio e um mergulho e teria afastado as preocupações estendida ao sol, mas os sábados normais, os dias normais desapareceram. Vamos para a sexta semana de confinamento e parece que custa mais agora. Os vídeos que se fazem para entreter, os concertos online, as aulas de Pilates via Faccebook e as cantorias à janela têm cada vez menos piada.

Deste desânimo escapam os animais que, sem gente, começam a atravessar ruas, a fugir dos parques como que a dizer que a vida continua. O sol de Primavera que me entra pela janela da sala é a prova, mais o chilrear dos pássaros nas árvores do hotel fechado. Os gatos dormem mais sossegados em cima dos muros num silêncio do qual tinha já perdido a memória. E não sei se as tardes do Laranjal de há 40 anos eram assim tão caladas. De quando em quando, ouvia-se o cantar de um galo ou um cão a ladrar, mas não metia impressão que ficasse tudo parado.

Nós sabíamos que longe dali, na cidade, havia movimento, autocarros a despejar ou carregar gente nas paragens e o cheiro adocicado de bolachas a cozer na Insular e na Fábrica Santo António. E ao fim do dia, quando os letreiros das lojas acendiam e ficavam a piscar, na viagem de regresso a casa, respirava-se um ar misturado de gasolina, café acabado de torrar, a bolos com creme e bacalhau cortado e embrulhado em papel de almaço. Não ia demorar aquele sossego, nós sabíamos.

Este intervalo é grande, arrasta-se há semanas e não existe data para acabar. Prometeram que era devagar e com cautela, vamos ter que nos contentar com o essencial, apenas o essencial por mais tempo. Não sei se sou eu, mas tenho saudades de me ocupar com mais do que a ida ao supermercado, com banalidades como um café bem tirado ou a manicure. E sonho com o dia em que se poderá conversar sem ter as palavras abafadas pela máscara, sem fazer esforço para reconhecer as pessoas que conhecemos desde sempre e que, de repente, são apenas uns olhos.

Mas é isto ou ficar ainda mais confinado com a cabeça às voltas, que há aquela parte do ganhar dinheiro e manter-se vivo e em que os vídeos catitas sobre como passar os dias em casa não aliviam o medo. O entusiasmo inicial esmoreceu e depois está este sol, este tempo ameno, este lugar de mar e sol e apetece dizer que o a doença não pega, mas não é verdade. E, sem outro remédio, fazemos mais uma semana de isolamento, limitados à farmácia e ao supermercado, de máscara e cheios de medo. Medo de ficar doente, medo de perder o emprego.

E ninguém parece preparado para viver com o essencial e preocupado com a sobrevivência. No Laranjal de há 40 anos não se vivia de outra maneira, mas eu não sei se ainda me lembro de como era, de como se fazia.

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