Crónicas

O bom, o mau e o assalto

Afastado o Presidente do Tribunal de Contas, controladas as comissões de desenvolvimento regional, e o caminho está livre para o saque

Ao milagre na gestão da pandemia, seguiu-se o milagre económico. Não acredita? Em Junho, o banco central previa que Portugal teria uma queda do PIB de 9,5%. Um desastre económico sem par. Entretanto Mário Centeno, ministro de finanças transformado governador, chegou ao Banco. O milagre começava a desenhar-se. De repente, o pessimismo económico suavizou-se e a previsão do Banco aproximava-se do que tinha previsto o Governo. Mera coincidência. Mas o milagre não ficou por aí. No boletim económico, o governador Centeno fez questão de elogiar as medidas tomadas pelo ministro Centeno, oferecendo nota máxima à intervenção do Governo. Tudo isto em menos de três meses de mandato. Quem disse que santos da casa não fazem milagres?

O bom: Vítor Caldeira

Vítor Caldeira preenche a definição de ilustre desconhecido. Presidente do Tribunal de Contas há quatro anos mas, até à semana passada, anónimo para a maioria dos portugueses. O problema não é dele, é nosso. Caldeira assinou algumas das críticas mais mordazes à atuação do Governo de António Costa. Apelidou de “maquilhagem política” a recompra da TAP pelo Estado. Acusou o Ministério da Saúde de eliminar doentes das listas de espera para cirurgia. Denunciou a gestão danosa do dinheiro que os portugueses doaram por conta dos incêndios de Pedrógão Grande. Apontou o dedo à Segurança Social por ter vendido prédios à Câmara de Lisboa abaixo do preço de mercado. E arrasou a reforma que o Governo se propõe a fazer às regras da contratação pública, por facilitar a corrupção. Por qual destes relatórios ficámos a conhecer o Presidente do Tribunal de Contas? Nenhum. Caldeira ficou conhecido porque foi despedido pelo primeiro-ministro a quem tinha de fiscalizar. Em certa medida, foi o melhor elogio que António Costa lhe fez. E a maior prova de que cumpriu com a sua missão. Vítor Caldeira meteu-se com o PS e levou. Ainda assim, o que mais espanta, para além da desfaçatez socialista, é a apatia de Marcelo e de Rio. O Presidente da República disfarçou o incómodo oferecendo uma medalha a Vítor Caldeira. O líder da oposição disse que teria preferido a continuidade de Caldeira, mas que tinha boa opinião do seu substituto. Que é como quem diz, para mim tanto me faz. Quem não perdeu tempo foi o PS, que já fez a primeira encomenda ao renovado Tribunal – uma auditoria ao Novo Banco. Alguém adivinha o resultado?

O mau: Excesso de mortalidade

Em Portugal, entre Março e Agosto de 2020, morreram mais 3400 pessoas do que seria normal para este período. Esse número representa o excesso de mortalidade, ou seja, a diferença entre a mortalidade esperada e a que realmente aconteceu. O vírus explica parte desse excesso. Cerca de 55% dos óbitos registados devem-se à COVID-19. O que intriga e preocupa são os restantes 45% de excesso de mortalidade. Isto quer dizer que, em Portugal, nos últimos seis meses, há 1512 mortes por explicar. Uma das explicações possíveis é que os doentes não-COVID ficaram para trás. Por duas razões diferentes. Porque tiveram receio de ir aos hospitais e, com isso, agravaram a sua condição de saúde. Ou porque os seus diagnósticos e tratamentos atrasaram-se com a necessária reorganização dos cuidados hospitalares. É urgente delinear um plano para regressar à normalidade e para recuperar os cuidados a todos os que ficaram para trás. Os profissionais de saúde estão no limite e os doentes não podem esperar mais.

O assalto: Novas regras da contratação pública

Álvaro Cunhal escreveu, com propriedade, que o PCP é um partido organizador. O movimento sindical é prova disso. Apesar de António Costa nunca o ter dito, é óbvio que o Partido Socialista é um partido controlador. Não é matéria de opinião, é um facto. O PS é um partido do Estado, no sentido de não se saber bem onde acaba um e começa o outro. É um partido das instituições, no sentido em que está organizado para a sua captura. Os exemplos acumulam-se. O Ministro das Finanças nomeado para o Banco de Portugal. O antigo porta voz indicado para o Tribunal Constitucional. Um deputado em funções apontado à entidade reguladora da energia. A interferência na nomeação dos procuradores europeus. A estratégia é simples. Mudam-se os protagonistas, controlam-se as instituições e depois alteram-se as regras do jogo. Nos próximos tempos, não haverá jogo mais importante do que os anunciados fundos europeus. 45 mil milhões de euros até 2030. O que propõe o governo socialista? Facilitar as regras da contratação pública, ao ponto de subverter em absoluto a transparência e a livre concorrência. Procedimentos com apenas um concorrente, favorecimento das grandes empresas de construção e possibilidade de aumentar em 20% o preço base do contrato. Tudo justificado pela necessidade de execução dos fundos europeus. Há que gastar depressa e, de preferência, tudo. Afastado o Presidente do Tribunal de Contas, controladas as comissões de desenvolvimento regional, em inexplicável conluio com o PSD, e o caminho está livre para o saque. O golpe pode ser aos fundos, mas o verdadeiro assalto é às instituições. E sem instituições fortes, independentes de quem governa, não há democracia que resista.

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