Crónicas

Vem viver a vida

A cassete dava a volta duas vezes todas as sextas-feiras, que era quando a minha tia Conceição tinha folga do hotel e as músicas do José Cid ajudavam a fazer as limpezas. Sei que ouvi até saber de cor as letras da rosa que não foi criada num jardim e a história do Zé da Anita, que ia pela charneca todas as noites. O cantor de óculos Ray Ban fazia sucesso naquele fim de década, num tempo em se media o prestígio de um artista pela Eurovisão. O José Cid ainda não tinha feito aquela do grande, grande amor e a minha mãe dizia que era uma injustiça não ter ainda cantado por Portugal.

No Laranjal, onde a água faltava no Verão e a maioria não sabia usar o telefone, o Cid era a música da cassete da minha tia Conceição, os temas que passavam na rádio, que do resto, do rock sinfónico e do “10000 mil anos depois entre Vénus e Marte”, disso não tínhamos sequer uma ideia do que fosse. Acho que não passava na rádio e, se passasse, não teria a emoção dos dramas do Teixeirinha e dos amores perdidos ou impossíveis do Júlio Iglésias e do Roberto Carlos. Os outros cantavam em inglês e, lá por cima, ganhava forma a moda de que em inglês qualquer cantiga ficava melhor.

Não ia demorar muito até o homem dos óculos escuros passar à história que, ai a meio dos anos 80, os hábitos mudaram, mesmo lá por cima. A minha tia Conceição trocou o gravador das cassetes pelo Posto Emissor, que dava música a tarde toda sem precisar de mudar de lado. Os novos ouviam os sucessos da pop, aquelas músicas de três acordes e letras tolas, quase sempre na voz de uns tipos de cabelo espetado e vestidos de forma extravagante. Não eram bonitos, nem muito talentosos, nem muito profundos. As miúdas tinham posters dos A-HA, do George Michael, mas ninguém se lembraria de colar o José Cid na porta do guarda-fatos.

Os adolescentes fazem isso com muita frequência, mandam para lixo tudo o que lhes parece coisa de velhos. Coisas de velhos são velharias sem interesse ou têm demasiado significado, pesam. E assim éramos todos nós, sem paciência para tirar o sentido àquele vem viver a vida amor, que o tempo que passou não volta mais e todas as outras verdades e máximas que só se entende em plenitude depois de chegar aos 40. Até lá o tempo não passa, só existe presente e futuro. E nesse presente não cabiam canções esquisitas como o macaco que gosta de banana, nem o cantor que, em anos, não mudara de estilo, era o mesmo, só que mais velho.

E o José Cid era isto, uma velharia, uma memória das tardes da infância, do tempo em que a tia Conceição tinha folga do hotel às sextas e me deixava ouvir as cassetes no gravador, enquanto limpava a casa ou arranjava as flores no jardim. Esta semana o músico que foi do sucesso à categoria de cromo e depois à de artista reabilitado ganhou um prémio Grammy pela qualidade musical. Eu corri a ouvir as músicas na net e não tenho estudos para dizer se é bom ou mau, sei que me trouxe parte da infância e da minha tia, que hoje é uma velhinha e nem sempre sabe quem é.