Todo o Mundo e Ninguém
Mas existem outras formas, não menos desonestas, de atingir objetivos inconfessáveis
Estes dois personagens criados por Gil Vivente, no seu Auto da Lusitânia, não perderam atualidade. E, já agora, nestes tempos de globalização, seria interessante que se fizesse um esforço para colocar o chamado fundador do teatro português no lugar que lhe compete: o de percursor do teatro de crítica social, na forma erudita, antecedendo em muitos anos outros autores europeus. Só que, entre literatura dominante e literatura dominada, o nosso Gil Vicente foi sendo esquecido; apenas num autor inglês encontrei uma referência ao nosso dramaturgo (avant la lettre) com as referências que lhe são devidas.
A massificação da comunicação constitui o estádio supremo de Todo o Mundo. Representa a maioria, o bem pensante, o senso comum, o que, na realidade, significa ser o consumidor da verdade consentida.
Consentida, porque aceite sem discussão. As certezas ficam para Todo o Mundo, as dúvidas para Ninguém.
A questão nem é nova. Temos no nosso léxico a expressão “em letra de forma”, ou seja, um texto impresso com alguma informação, e ser impresso dava-lhe um cunho de autenticidade. E com um certo fundamento: neste País à beira-mar plantado, só podia ser impresso o que era aprovado, através do célebre imprimatur, tão apetecido como odiado, porque, se por um lado garantia o sucesso, por outro cortava quaisquer veleidades pouco ortodoxas.
Hoje a censura é pouco eficaz. Mesmo os países menos abertos ao livre pensamento têm dificuldades em conter a avalanche de informação que passa pelos canais informáticos. Mas também passam coisas que constituem crimes à luz do Direito Internacional. Transações fraudulentas, pornografia infantil, campanhas desonestas, são exemplos de práticas que hoje reúnem consenso para serem combatidas, em grandes ações concertadas, mas raramente concretizadas.
Mas existem outras formas, não menos desonestas, de atingir objetivos inconfessáveis.
Também aqui nada de novo: basta lembrar a campanha lançada nos jornais americanos que deu origem à Guerra Hispano-Americana em 1898, percursora de outras campanhas que mergulharam o século XX numa série de conflitos. Como a operação de 31 de agosto de 1939 contra a estação de rádio alemã de Gleiwitz (Gliwice), atualmente na Polónia, em que elementos das SS e da Abwher simularam um ataque de polacos ao posto alemão, deixando mesmo um morto (executado de véspera) no terreno como prova; a campanha de rádio que se seguiu justificaria o ataque alemão à Polónia. Para não falar de uma guerra para destruir armas de destruição maciça que nunca apareceram...
Hoje as coisas são mais sofisticadas, mas o princípio é o mesmo. Há a propaganda branca, à vista de todos; há a propaganda negra, que se faz passar por amiga, mas que vem do inimigo, e que é, em geral, fácil de identificar; e há a propaganda cinzenta, que é a que pretende vir de fonte neutra, mas que é feita pelo adversário.
O recente escândalo do Facebook dá uma boa mediada do que é possível fazer, dentro dos mesmos princípios, mas com os meios atuais. Influenciar milhões de eleitores, acedendo fraudulentamente a dados que deveriam ser confidenciais, foi tarefa fácil, e tanto assim que seria para continuar, se não tivesse sido descoberta.
Golpe de génio? Nem por isso. Não é muito diferente de convencer as pessoas que este detergente é mais eficaz, aquela bebida mais saudável, ou estoutro eletrodoméstico melhor que os demais. Através de mensagens bem inseridas, os slogans passam ao vocabulário corrente, e como tal passam a ser coisa certa – como era a “letra de forma”.
Os avanços no estudo da psicologia de massas permitiram sofisticar em muito estes métodos, e isso leva à velha questão de saber ao serviço de quem e de quê está a Ciência.
Mas a questão de fundo não é essa. Está em apurar quem encomendou o serviço. Porque quem encomenda pode não dominar as técnicas de comunicação, mas sabe bem qual o resultado pretendido – e não está, de forma nenhuma, inocente no processo.
As últimas eleições americanas para a Presidência estão a tornar-se um caso de estudo nesta matéria. Primeiro foi a ingerência russa, veementemente negada, hoje consensualmente aceite, embora se desenhe um processo de alienação de responsabilidades em que tudo leva a crer que o culpado virá a ser um porteiro da Casa Branca ou o polícia de giro, que não estavam ao serviço quando tudo aconteceu.
Depois foi o caso do Facebook e a sua associada Cambridge Analytica, onde a procissão ainda vai no adro, mas que deve levar o mesmo caminho.
Certo é que o beneficiário dos dois casos não é outro que senão o atual Presidente – o criador do famoso neologismo Fake News – notícias falsas.
A Psicologia do Insulto deveria ser um ramo distinto da Ciência. Quem insulta fá-lo com uma motivação e com um objetivo. Mas com uma constante: o insulto baseia-se naquilo que o seu autor considera sensível, por sentimento próprio, ou seja, cada um insulta por onde lhe dói. Assim, o marido suspeitoso (ou convicto) da leviandade da esposa chamará chifrudo ao visado; o desonesto chamará ladrão ao adversário; e o rebento de mãe pouco recatada chamará o outro de filho da...
Donald Trump, que tudo indica dever a sua eleição a manobras convergentes da Rússia e da tal Cambridge Analytica, através da manipulação de informação, tem toda a razão para falar em Fake News – está apenas a aplicar a Psicologia do Insulto, ainda que se duvide que conheça algo sobre este ramo da Ciência.
Dada a enorme projeção do Presidente através dos seus famosos twitter, seria melhor fazer um paralelismo com o nosso ainda não suficientemente divulgado Gil Vicente, no seu Auto da Lusitânia.
Pior foi a descoberta da intervenção da Cambridge Analytica no referendo na Inglaterra que deu origem ao BREXIT. Assim sendo, temos uma convergência de métodos e intenções entre duas grandes figuras da política mundial: além de Trump, temos o mediático Boris Johnson, que brilhou na campanha pelo BREXIT, e é o atual Ministro dos Estrangeiros do Reino Unido.
Se recordarmos a calorosa saudação do Presidente dos EUA à Inglaterra, pela sua saída da Comunidade Europeia, fica-nos um sentimento que balança entre a convergência e a coincidência. Em virtude do que os adeptos da Teoria da Conspiração, se me permitem a expressão, começam a salivar...
Voltando a Gil Vicente, recordemos o que ele pôs na boca de Belzebu, ditando a Dinato, o outro diabo: escreve aí que Todo o Mundo é mentiroso, e Ninguém fala a verdade...