Crónicas

Os pontos

A roupa nova significava libertar-me do que estava velho, gasto e usado. Dos sapatos com meias solas e capas, das t-shirts sem cor e puídas que não chegavam a encher o velho guarda-fato de madeira de castanho

Não sei se alguém ainda estuda para os pontos, se faz pontos em vez de testes, mas nos anos 80 as notas na pauta no fim do período vinham das percentagens que se tirava nos pontos. Os professores falavam muito da participação na aula, do estudo contínuo e dos outros bons princípios como o respeito e a disciplina que, na hora de dar um 10 ou 17, um 4 ou um 3, passavam a verbo de encher sermões.

O jogo era limpo e cristalino. Quem tinha nota passava, quem não tinha lutava como um louco para passar, nem que fosse cambado a duas disciplinas. Caso contrário ficava a marcar passo e tinha castigo para o Verão inteiro. Os repetentes não tinham boa fama e ganhar o rótulo de ser duro de cabeça não era bom. Pelo menos a minha mãe fazia disso uma questão de honra e vergonha.

E a meio de Novembro, quando os professores entregavam os primeiros pontos corrigidos, as notas eram decisivas quanto à generosidade do Natal. Eu, como aquela geração inteira, esperava pela fartura das festas, fazia orçamentos com as notas de cinco contos das tias, namorava as montras e imaginava-me dentro da roupa e com os sapatos nos pés na missa do galo e a entrar pela porta da escola nos primeiros dias de Janeiro.

A roupa nova significava libertar-me do que estava velho, gasto e usado. Dos sapatos com meias solas e capas, das t-shirts sem cor e puídas que não chegavam a encher o velho guarda-fato de madeira de castanho. A vida no Laranjal não permitia muito além do essencial. Nem roupa, nem comida, nem desperdício de outra natureza, pois as pessoas e as coisas seguiam um ciclo. E, naquela engrenagem, a minha função era tirar boas notas nos pontos da escola.

Não posso dizer que tirei sempre, encalhei muitas vezes na Física-Química e no Inglês, balancei na Matemática e, mais do que isso, cedi muitas vezes à preguiça e acabei a ouvir o sermão de que pecado era ter boa cabeça e notas que não iam além dos mínimos para a positiva, como se fosse desprovida de ambição. E não era verdade, eu sonhava muito, com roupas, com viagens, com uma vida glamourosa, mas aos 14 anos, com as hormonas a mudar-me o corpo, era difícil manter tudo em ordem.

Lembro-me de sentir que as coisas me fugiam, que nunca seria capaz de acertar a minha cabeça com o corpo, com as rotinas, com o que me exigiam e também não sei como é que, quase por magia, tudo me começou a parecer mais simples. Crescer talvez seja isso num dia somos crianças, noutro adolescentes; num dia somos adolescentes e logo a seguir jovens cheios de objectivos. E percebi isso nos primeiros pontos do 10º ano, quando as notas dispararam e o Natal foi generoso.