Crónicas

As fogueiras da santa ignorância

É mais fácil queimar as diferenças do que tentar compreendê-las. Agarrados ao “Malleus Maleficarum” do século XXI, assim prosseguem os Torquemadas da atualidade, imbuídos no espírito da “Santa Ignorância”.

Infelizes daqueles que sufocam as vozes discordantes, pois deles será o reino da estupidez.

O totalitarismo que se instalou nas sociedades, organizações e nos partidos políticos que nos representam, conduz ao isolamento, impedindo o desenvolvimento das dinâmicas necessárias para um crescimento saudável, onde o debate e a troca de ideias deveriam ser vistos como argumentos que só engrandecem e nos retiram da nefasta zona de conforto.

Num mundo que sempre foi e continuará a ser feito de diferenças, cultiva-se a intolerância relativamente a tudo aquilo que destoa. Não há respeito, nem tão pouco vontade em entender a mensagem do outro. Aqui dominam as vaidades de gente rasteira que não sabe ouvir, nem sabe o que fazer com as críticas. Depois dos habituais “ai Jesus que o Demo anda à solta”, iniciam-se as práticas inquisitórias, acendem-se as fogueiras e baila-se em redor das chamas que consomem carácteres, passados, currículos e contributos.

É mais fácil queimar as diferenças do que tentar compreendê-las. Agarrados ao “Malleus Maleficarum” do século XXI, assim prosseguem os Torquemadas da atualidade, imbuídos no espírito da “Santa Ignorância”.

Convictos das suas verdades absolutas, estes baselgas da inquisição moderna não têm qualquer pejo em lançar para as fogueiras aqueles que os deveriam fazer crescer. Ofendidos na sua vaidade, erguem amuletos num desesperante ritual para exorcizar os tais demónios que habitam na mente, na pena, nas palavras e na forma de estar daqueles que devem ser reduzidos a cinzas. Depois, é só esperar que os ventos do esquecimento levem para bem longe todo e qualquer vestígio desse pó que, outrora, teve um corpo, uma mente, uma determinada importância.

Num país de velhos, onde a antiguidade, a experiência, o passado, tendem a ser remetidos para um canto não tão visível, não tão incómodo, grassa a falta de respeito pela condição humana e, de repente, o contributo que aquele ser vivo deu para a sociedade já não interessa, deixou de ser importante num presente inundado por novas células, tão cheias de força, mas tão vazias de conteúdo.

Que “novo” PS é este – que se diz a única alternativa – que afasta um militante que, ao abrigo da liberdade de pensamento e de expressão, manifestou uma opinião discordante? Manda-se para a fogueira aquele que ousou contestar e fecha-se os olhos àquele que causou embaraço e dolo com os seus actos?

E viva a democracia, certo?

De que servem planos estratégicos a 10 anos – quando os mandatos são de quatro... essas contas da presunção e água benta... – se se dá a cara pela continuidade do totalitarismo que não sabe ouvir, aceitar e conviver com as diferenças?

E ainda aqui vamos...

É preciso tentar entender que o mundo à nossa volta não é, necessariamente, parecido ou igual àquele que é desenhado pela nossa mente. Karl Marx que o diga, pois concebeu um plano extraordinário, esquecendo-se que o seu manifesto seria colocado em prática pelos homens e não por seres angelicais, livres de todo e qualquer pecado. E foi o que se viu... E ainda é o que se vê...

Parar para ver e entender é um luxo nos dias de hoje, em que cada um engalfinha-se para fazer valer os seus pontos de vista, mesmo que isso signifique uma entrada com queda assegurada na vertiginosa viagem do pensamento totalitário.

Parar para escutar tende a ser, a breve prazo, um dom no meio de uma sociedade repleta de vozes e de egos ávidos por aparecer.

Nesta derrocada imparável de detritos vocais egocêntricos que têm de ser escoados custe o que custar, ninguém quer “perder” tempo a ouvir o que o outro tem para dizer. A prioridade em vender determinado produto não dá margem para grandes reflexões e termino como comecei: infelizes daqueles que sufocam as vozes discordantes, pois deles será o reino da estupidez.