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Carta a um Cardeal em Roma

Na apresentação do primeiro livro de José Tolentino Mendonça, em setembro de 1990, no ARCO, no Funchal, falei da importância da poesia na construção da Cidade.

Como no lançamento de “os dias contados”, volto a dizer que não seria surpreendente a suspeita em relação ao poeta. É que arriscar escrever num diálogo com a vida, vendo o espantoso esplendor do mundo e o brutal sofrimento, cantar a amargura dos dias, assumindo todas as dores, sem pactuar com a demagogia, com o oportunismo, transformam o poema numa forma de compromisso e o poeta em promotor de uma intensa ação crítica.

Uma poesia que toque na condição humana em termos existenciais, e assuma a consciência do tempo que passa, a perceção da vida e da morte, a interpretação das injustiças sociais e das contradições na Cidade, uma poesia que provoque o pensar é um perigo.

A poética cujo efeito estético seja a provocação do pensar é perigosa. O poeta introduz a intranquilidade: nas consciências, nas certezas ideológicas, na ordem pública, nas instituições, na Cidade. Faz-nos irrequietos e insubmissos. Recordando Ruy Belo, “a poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da convivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida” (Obra Poética II, p.11).

Escutaremos o poeta com encantamento e surpresa.

Ao Cardeal diremos que quando um poeta chega a Roma é um sinal de que a esperança mais escarlate não está morrendo. E perguntamos: a esperança não nos engana?