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Retirada das tropas dos EUA deverá levar a intervenção militar turca na Síria

FOTO Reuters
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A retirada das tropas norte-americanas da Síria levará muito provavelmente a uma intervenção militar da Turquia no nordeste sírio para combater as milícias curdas, que a coligação dirigida pelos Estados Unidos apoiava, considera o analista Álvaro Vasconcelos.

Em declarações à agência Lusa, o especialista em questões de segurança e estratégia pensa que, face ao vazio deixado pelos Estados Unidos, o cenário mais provável e o pior é o da intervenção militar da Turquia no nordeste da Síria.

As milícias curdas Unidades de Protecção Popular (YPG), parte essencial da coligação das Forças Democráticas Sírias (FDS) apoiada pela coligação internacional, são consideradas terroristas por Ancara pelas ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), proibido na Turquia, e o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, tem vindo a ameaçá-las.

Álvaro Vasconcelos pensa que aquele é o cenário mais provável por considerar que “é o que os turcos sempre quiseram fazer”, impedir “uma área curda na Síria com um grande grau de autonomia política” que temem poder ser “um apoio para os movimentos independentistas separatistas curdos da Turquia”.

Se Ancara não intervier, as forças do presidente sírio, Bashar al-Assad, e dos seus aliados (Rússia e Irão) provavelmente fá-lo-ão, disse, assinalando que o nordeste “continua a não estar sob controlo do Governo” de Damasco, sendo “o que resta da resistência síria”.

Em qualquer dos casos, a zona autónoma que os curdos instauraram no norte da Síria está ameaçada e perspectiva-se, “de novo, um conflito com uma dimensão de tragédia humanitária grande e que levará de novo a mais refugiados, a mais mortos e a mais deslocados internos”, adiantou.

Desencadeada em 2011, a guerra na Síria já causou mais de 360 mil mortos e obrigou milhões a abandonarem as suas casas.

O presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou há uma semana a retirada dos cerca de 2.000 militares destacados na Síria, levando à demissão do seu secretário da Defesa, Jim Mattis, e suscitando preocupação entre os aliados europeus.

Trump alega que os ‘jihadistas’ do Estado Islâmico foram praticamente vencidos, deixando de haver razão para os militares norte-americanos continuarem na Síria.

O grande inimigo do grupo extremista tem sido os combatentes curdos, que conseguiram reconquistar ao Estado Islâmico grande parte do território que ocupavam no norte da Síria, contando com a ajuda da coligação internacional conduzida pelos Estados Unidos.

Álvaro Vasconcelos prevê “um novo fôlego” para o que resta do Estado Islâmico em ambos os cenários que indicou, ou seja, que o grupo ‘jihadista’ aproveite “para se tentar consolidar” perante as dificuldades dos curdos.

França, que integra a coligação internacional anti-’jihadista’, foi um dos países que lamentou a decisão dos Estados Unidos de retirarem as suas forças do combate ao Estado Islâmico na Síria. “Um aliado deve ser fiável e coordenar-se com os outros aliados”, disse o presidente Emmanuel Macron.

Segundo Erdogan, Washington decidiu retirar as tropas depois de Ancara ter garantido que poderia erradicar o que resta do Estado Islâmico e Trump falou com o homólogo turco para que a saída dos militares da Síria fosse feita de forma “lenta e altamente coordenada”.

Antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, Álvaro Vasconcelos assinalou que a Europa é onde “as repercussões do conflito sírio fora da Síria têm sido mais terríveis, para além do Iraque”, lembrando os “ataques do ‘Daesh’ (acrónimo árabe do Estado Islâmico) em cidades europeias”.

“Os europeus são os primeiros interessados na estabilidade da Síria, numa Síria democrática, numa Síria pacífica, mas não têm mostrado capacidade para o fazerem, têm estado ausentes praticamente”, afirmou.

Álvaro Vasconcelos considera que os europeus “têm uma capacidade militar para substituírem de certa forma a presença americana” na Síria, mas duvida se “terão capacidade política” se “estarão em condições de se unirem e de aceitarem participar num conflito que é fundamental para a Europa”.

Um cenário “altamente improvável, mas desejável perante o caos do alargar do conflito” seria uma intervenção da comunidade internacional, nomeadamente dos europeus, para apoiar os curdos, disse.

“Vamos pensar que haveria um acordo das Nações Unidas, um cenário altamente improvável, que os próprios americanos aceitariam para não terem ali um desaire tremendo com a sua retirada. (...) nessa altura considerar-se-ia uma região mais democrática e mais pacífica no nordeste. (...) O ‘Daesh’ terminaria por ser varrido dessa região da Síria e o governo do Assad não triunfaria no conjunto da Síria e seria obrigado a determinada altura a uma negociação e a encontrar uma saída pacífica para o conflito”, precisou.

Este é um cenário “um pouco utópico”, reconheceu Álvaro Vasconcelos, mas considerando a época, estarmos quase no princípio de um novo ano quando “sonhar faz sentido”, foi ainda mais longe: “Quem sabe se 2019 não nos vai dar uma boa surpresa que era a União Europeia acordar, dizer que chegou a hora”.

Tal significaria a Europa assumir-se “como um ator político internacional de primeiro plano”, unir-se e pôr “as suas capacidades militares significativas ao serviço de uma política clara na região” intervindo “militarmente na Síria”.