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Crónicas

O bom, o mau e os reciclados

No meio da azáfama autárquica, há uma tendência clara: vários antigos militantes do PSD surgem como candidatos por outros partidos

A 16 dias da entrega das listas de candidatos, é fácil perder a conta ao número de mudanças, desistências, trocas, recuos estratégicos e avanços calculados de vários candidatos. No xadrez autárquico, não há partido que esteja a salvo de um xeque-mate por motivos pessoais. Mas se o tabuleiro se agita por toda a ilha, em São Vicente a agitação foi tanta que as peças foram ao ar e, ao caírem, o peão fez-se rei. Felizmente, o PSD não se esqueceu da lição aprendida em 2013: um peão local vale mais que uma torre importada.

O bom: José Luís Carneiro

Depois de Ventura, foi a vez de Carneiro ser recebido em São Bento. Num tempo em que a política se transformou na arte ruidosa da acusação mútua, parece improvável a possibilidade de diálogo entre a maioria e a oposição. O que é certo, é que o PSD falou com o Chega e, depois, com o PS. Fê-lo por necessidade parlamentar - o PSD não têm maioria na Assembleia -, talvez por tática mediática – a um governante fica bem a diplomacia -, mas duvido que Montenegro o tenha feito por convicção. Não o critico por isso. A política é a arte do momento, e se o momento exige negociação, pobre do político que não negoceia. Mas se o momento para o PSD é de diálogo, resta saber quem está disposto a conversar. É aí que reside o dilema do PS e de José Luís Carneiro. Precisamente o mesmo impasse que Rui Rio viveu perante António Costa. Deixar a maioria governar encostada aos extremos e aguardar pela queda ou chamar o governo ao centro e influenciar a política de governação. Carneiro escolheu uma versão da segunda via. Mostra disponibilidade para convergir com o Governo nos grandes temas – saúde, soberania e nacionalidade – e, simultaneamente, vinca a diferença programática em tudo o resto. Por um lado, silencia os que o acusavam de criticar a viragem do governo à extrema-direita sem nunca se ter mostrado disponível para dialogar. Por outro, pressiona Montenegro a uma clarificação ideológica, obrigando-o a escolher entre a moderação do centro ou o populismo à direita. Depois dos encontros em São Bento, Montenegro nunca prestou declarações. No entanto só José Luís Carneiro teve direito à fotografia do aperto de mão com o primeiro-ministro. Por vezes, uma fotografia diz mais do que qualquer comunicado.

O mau: Acordo Comercial Europa-Estados Unidos

Há uma indisfarçável ironia na Europa que se juntou para permitir a livre circulação de pessoas e bens sucumbir a um acordo comercial imposto pelos Estados Unidos mais protecionistas das últimas décadas. Perante a possibilidade de uma tarifa de 30%, transversal a todos os produtos europeus chegados ao mercado americano, a capitulação europeia pelos 15% parece um mal menor. Ao contrário do que debita Trump, o “maior acordo alguma vez feito” será pago pelos consumidores americanos e pelos contribuintes europeus. Os primeiros terão de suportar o inevitável aumento do preço dos produtos europeus, os segundos serão forçados a comprar 600 mil milhões de dólares em equipamento militar americano e 638 mil milhões de euros em energia aos Estados Unidos. Podem não haver vencedores neste acordo, mas parece evidente que os burocratas europeus foram atropelados, à mesa das negociações, pelo pragmatismo de Trump. É que até o argumento de Von der Leyen – que o acordo teria sido decisivo para garantir estabilidade económica – parece saído de uma realidade alternativa. Basta relembrar que Trump fechou um acordo semelhante com o Reino Unido com tarifas mais baixas e que a sobrevivência deste entendimento depende, em última análise, da assinatura de todos os Estados-membros europeus. Ora, tendo em conta a reação do primeiro-ministro francês, que viu no acordo um dia negro para a Europa, as expectativas não são as melhores. Podem chamar-lhe “acordo”, mas o documento assinado por Von der Leyen parece mais um contrato pré-preenchido por Trump, com letras pequenas e preço elevado.

Os reciclados: Candidatos ex-PSD

Em ano de eleições autárquicas, e por evidente coincidência, o mercado de transferências partidárias parece mais animado que o seu equivalente futebolístico. Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda ou de partidos para movimentos, os políticos mudam de flanco (e de camisola) com a imprevisibilidade própria dos artistas que pisam os relvados. Todavia, no meio da azáfama autárquica, há uma tendência clara: vários antigos militantes do PSD surgem como candidatos por outros partidos. Devidamente reabilitados, separados por cor e embrulhados em discursos novos, integralmente reciclados e com prazo de validade prorrogado para utilização em novo lar partidário. Alguns em lugares de destaque, outros satisfeitos com a mera presença na fotografia, todos eles no exercício do seu direito político mais básico: o direito de mudar de ideias e, por maioria de razão, de partido. Até os que, no início de 2025, desfilavam felizes pelas ruas do Funchal empunhando uma bandeira laranja. Mas se há conclusão a tirar da flexibilidade ideológica de alguns candidatos, será não tanto sobre os próprios, mas sobre os ecopontos partidários que os acolhem. É curioso, talvez até cómico, que os partidos que fazem vida da crítica feroz e implacável ao PSD, que prometem uma reforma radical do sistema, chegada a hora de apresentar uma alternativa, a encontrem nas pessoas que fizeram carreira no partido que agora abominam. Em política, tal como no ambiente, reciclar é sempre melhor que produzir de novo.