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Crónicas

Contrato Blindado com Vista para o Céu

1. Contrato Blindado com Vista para o Céu.
[ou como o fogo-de-artifício ilumina oito minutos e apaga dois anos de concorrência]

A Direcção Regional de Turismo decidiu que este ano não chega pensar no próximo réveillon, não, isso seria banal, um gesto sem visão, coisa de municípios pobres e comedidos, e então vai daí, contratam logo dois, como quem compra dois pares de sapatos iguais porque o vendedor disse que nunca mais iam fazer aquele modelo. E estamos em Agosto, com o calor colado à pele, as cigarras cantam e os grilos estridulam, o trânsito das horas de ponta é curto, e já está decidido o que vai rebentar no céu daqui a mais de um ano, daqui a dois mais concretamente, o dinheiro contado, 3,26 milhões, para garantir que quando a noite chegar e a multidão estiver na baía a fingir que o ano novo muda alguma coisa, os fogos sejam os de sempre, o mesmo “uuh” colectivo quando a explosão se abre em flor, a mesma cor que se dissolve no fumo, a mesma coreografia que já está, agora mesmo, escrita num papel guardado em gaveta da Secretaria, entre agrafos e carimbos, longe do mar e da música.

E no papel, para que pareça que há engenho, até escreveram que o segundo ano vai custar menos, 1.070.850 € para 2025/2026, 1.044.150 € para 2026/2027, uma descida de 26.700 €, como se a inflação tivesse saído de férias, como se o gasóleo, as pólvoras, os metais para as cores, o seguro contra explosões e a mão-de-obra que acende e dispara cada tubo fossem mercadorias que, de repente, obedecem à caridade. Um desconto que não é desconto, uma esmola calculada, sabendo-se que, quando for preciso, virá um aditamento, um “trabalho a mais” para corrigir a aritmética. E no Porto Santo, a ilha que olha para a Madeira como quem olha para uma irmã mais nova que se mudou cedo demais de casa, o preço não se mexe: 606.285 € este ano, 606.285 € no seguinte, como se os números fossem pedras gravadas, como se o mundo não mudasse.

No Porto Santo é sempre assim: menos gente, menos logística, menos tudo, mas o espectáculo custa mais de metade do Funchal, e a matemática fica a olhar para isto com ar de vergonha, como quem apanha um erro ortográfico numa carta de amor. E há o gesto cerimonioso, um mimo para o vencedor, o chamado Prémio de Consagração, 5.000 €, troco em relação ao valor do contrato, mas útil para a fotografia, como um café oferecido depois do banquete, pago pelo próprio convidado, uma medalha dourada para pendurar na parede do escritório onde, provavelmente, já há outras iguais.

E o concurso que dizem aberto não é aberto, é uma porta que range mas que não se move. Porque não basta ter uma ideia bonita, imaginar um céu de estrelas artificiais a cair sobre o mar, não basta saber como se organiza um espectáculo destes, é preciso vir com montagens audiovisuais nocturnas perfeitas, cada explosão no ecrã, cada cor registada, cada centelha no lugar certo, e até a contagem, segundo a segundo, dos últimos vinte segundos, como se fosse um segredo de Estado, um código que só quem já fez o fogo do Funchal alguma vez pôde aprender. É como pedir a um actor que interprete Hamlet sem nunca ter estado em palco, mas exigindo que acerte, de olhos vendados, no tom exacto de cada sílaba. Resumindo: há fatos feitos à medida que acertam menos do que esta encomenda.

Depois, a justificação que já conhecemos, dita com a entoação de um padre que recita um salmo decorado: “manter a marca reconhecida internacionalmente”. O que quer dizer, no idioma dos bastidores, manter tudo como está: as mesmas mãos a segurar o contrato, os mesmos nomes a receber, os mesmos formatos repetidos como uma velha canção de Natal. É marketing disfarçado de necessidade, é o selo de “marca” usado como carta branca para que ninguém mais entre, para que o negócio continue embalado e protegido do incómodo da concorrência.

E quando chegar o dia, as pessoas vão estar na marginal, as famílias vão ajeitar as crianças ao colo, os turistas vão tirar fotografias com o telemóvel no ar, e durante oito minutos o céu vai abrir-se em círculos e lírios de luz, as cores a misturar-se com o fumo, os barcos apinhados de gente a aplaudir, e nesta santa terra, no silêncio fechado dos gabinetes, o contrato continuará a contar os seus dias, dois anos de portas trancadas, os números a sorrir para quem tem a chave. No fim, como sempre, o fogo-de-artifício é para nós. A luz verde é para eles.

2. A Ditadura dos Tijolos: Como o Estado Destrói o Sonho da Casa Própria da Marta e do Rui.

[Um casal, um terreno herdado e o labirinto fiscal que transforma cidadania em submissão]

Em teoria, construir casa seria um gesto civilizacional. A afirmação de que se quer deixar de ser inquilino da incerteza e passar a ser proprietário de alguma coisa, por mais modesta que seja. Um sinal, ainda que ingénuo, de que se acredita no país e na estabilidade. Mas essa teoria, como tantas outras, não resiste a trinta segundos de contacto com a realidade. Na Madeira, como no resto do território, construir casa é um exercício punitivo que o Estado reserva aos incautos.

Tomemos, por exemplo, um casal jovem, chamemos-lhes Marta e Rui, porque podiam ser outros quaisquer. Ela, enfermeira no hospital, ele, engenheiro civil a recibos verdes há sete anos, sem nunca ter conhecido férias pagas. Vivem num T1 arrendado, 47 metros quadrados com vista para um muro, e sobreviveram à pandemia com dois computadores portáteis e uma mesa da IKEA. Um dia, ela herda um terreno nos arredores do Funchal, do avô que, num rasgo de realismo pouco comum, manteve o testamento actualizado. Não é grande coisa, um rectângulo de terra empedernida com vista para um centro de inspecções, mas é deles. E pela primeira vez, imaginam que talvez possam construir ali a casa onde não precisem de tirar a roupa do estendal sempre que chove. Pedem orçamentos, sonham com uma cozinha luminosa, dois quartos e uma varanda que, com sorte, apanhe um fiapo de sol ao fim da tarde. É aí que começa o terror tecnocrático: projectos, aprovações, licenças, taxas, mais taxas, mais papelada, declarações, requerimentos, memórias descritivas, certidões negativas, mapas de impermeabilização, estudos de comportamento térmico, pareceres externos, fotocópias autenticadas, reuniões com o arquitecto, revisões pedidas pela Câmara, alterações não substanciais, notificações por edital, licenciamentos de estaleiro, planta de localização em escala 1:2000, ficha técnica da habitação, inscrição no INCI, comunicações à ACT, registos na E-Redes, consultas a inúmeras entidades, modelo 1 do IMI, comprovativo de pagamento do selo, registo da licença na Conservatória, vistorias de confirmação e, claro, o livro de obra, como se tudo isto fosse um luxo e não uma necessidade básica. A determinada altura, já não sabem se estão a construir uma casa ou a concorrer a um subsídio europeu para reabilitação de ruínas. E em pouco tempo, passam da esperança doméstica ao exílio orçamental, vendo-se transformados em suspeitos administrativos por ousarem construir numa terra onde tudo está autorizado excepto a autonomia pessoal.

E tudo isto ainda antes de se pagar ao arquitecto, ao engenheiro, ao fiscal de obra, ao técnico de segurança, ao autor do projecto térmico, ao autor do projecto acústico, ao coordenador geral e, claro, ao autor do certificado energético, uma dessas invenções europeias para empregar os que não conseguem projectar uma varanda. Depois vem o grosso. A empreitada. A construção propriamente dita. E aqui, entre o preço dos materiais, com IVA a 22%, porque, aparentemente, construir uma casa para viver é considerado um acto de consumo supérfluo, e a mão-de-obra, a conta ultrapassa facilmente os 200 mil euros. Com sorte, mais uns 10 mil em ligações às redes públicas, mais os seguros obrigatórios, mais as telecomunicações, porque até o wi-fi é agora parte do processo administrativo.

Tudo somado, o casal jovem, que herdou o terreno e queria construir uma casa banal de 150 metros quadrados, vê-se perante uma factura final de 230 mil euros, sem incluir móveis, paisagismo, ou sequer um candeeiro. Um número que não reflecte luxo nem ambição: apenas o preço de existir legalmente no território. E mesmo esse preço está longe de garantir paz. Porque depois da obra, virá a fase da legalização final, da certificação energética, da inspecção camarária e da emissão da licença de utilização, tudo com prazos dilatados, procedimentos opacos e a ameaça constante de “devolução do processo para correcção”.

E no fim de tudo isto, a pergunta óbvia: porquê? Por que razão um Estado que se proclama social torna quase impossível o acto mais elementar da vida adulta? A resposta, como sempre, é deprimente: porque o Estado não existe para servir, existe para extrair. Serve-se dos cidadãos como matéria fiscal e como álibi moral. E pune quem não se limita a consumir, quem tenta criar, quem tenta construir.

A casa própria, na Madeira como em qualquer parte do país, é um privilégio cada vez mais reservado a quem herda mais do que um terreno. O resto fica-se pelas rendas altas, pela precariedade legal, e pelas ilusões de classe média alimentadas a crédito e televisão.

O Estado não quer que construa. O Estado quer que obedeça. E pague.