DNOTICIAS.PT
Crónicas

O bom, o mau e a jóia

Como a semana demonstrou, as eleições autárquicas são terreno fértil para o habitual desvario partidário, onde o improviso supera sempre o bom senso. Perante o difícil desafio de recuperar a Câmara do Funchal, o Partido Socialista decidiu repescar o candidato com o pior resultado de sempre em eleições autárquicas na cidade – Rui Caetano. Fiel à lógica da sua escolha, Caetano subiu à serra, não em busca de votos, mas de rebanhos, defendendo com entusiasmo pastoral o regresso de cabras e ovelhas às encostas do Funchal. Como se sabe, o que realmente aflige os funchalenses é a dramática escassez de gado urbano.

O bom: ETAR do Funchal

Há obras que marcam o mandato de um governo. A Expo 98, e a impressionante recuperação da zona oriental de Lisboa, marcaram a governação de António Guterres. O novo aeroporto da Madeira marcou, de forma indelével, os governos de Alberto João Jardim. Mas há outras obras – menos vistosas, mais subterrâneas – que também deixaram a sua marca. Não pela sua grandiosidade, mas por definirem, com precisão, um certo modo de governar. No Funchal, essa obra chama-se ETAR. Apesar de ser um investimento unânime, a ETAR tornou-se no símbolo da forma como o PS transformou a governação do Funchal num exercício refinado de bloqueio político e de guerrilha institucional. Foi assim no inusitado embargo às obras de recuperação da Ponte Nova, que bloqueou, por capricho municipal, o coração da cidade durante 17 meses. E foi assim quando a Câmara se insurgiu contra as inocentes barracas de Natal da placa central, aparentemente sem lugar no espírito natalício socialista - mais dado a embargos que a embrulhos. A maior obra de sempre da Câmara do Funchal, nas mãos dos socialistas, parou ainda antes de começar. Primeiro, a guerra pelo local de instalação, com a inusitada sugestão de construí-la no subsolo do campo do Liceu Jaime Moniz. Depois, os atrasos que colocaram em causa o financiamento europeu e arriscaram a condenação de Portugal nos tribunais europeus por violação de diretivas comunitárias. No final, até as expropriações ficaram por fazer. Tudo serviu para justificar um clima de trincheira urbana que fez do Funchal um campo de batalha constante, onde cada obra era pretexto para novas escaramuças políticas. A diferença não poderia ser mais evidente, entre quem fez da governação um exercício de bloqueio e quem fez dela um instrumento de resolução de problemas.

O mau: Sócrates e o sistema judicial

No dia em que entrou na sala de audiências do Campus de Justiça, passavam-se quase 11 anos desde que Sócrates tinha sido detido na manga de um avião no aeroporto de Lisboa. Se a maior parte dos intervenientes processuais se queixa da lentidão da justiça, o ex-primeiro-ministro fez dessa morosidade o núcleo central da sua estratégia de defesa. Desde o início da investigação, Sócrates apresentou mais de 100 recursos e incidentes processuais, repetidamente pontuados com reclamações e incidentes de recusa de juiz. Raramente com sucesso, mas sempre de olhos postos na prescrição dos crimes. Por isso, não foi surpreendente que a primeira intervenção da defesa de Sócrates no julgamento tenha sido para pedir a sua suspensão. Ainda menos invulgar, foi o anúncio, cuidadosamente feito nos dias que antecederam o início do julgamento, de uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra o Estado português. Ou a mirabolante tentativa de transmitir, em direito e sem cortes, o julgamento na CMTV. Sócrates não quer um julgamento, quer um palco público. Pois sabe que, na justiça, corre o sério risco de ser condenado e no palco mediático, pode sempre fingir que venceu.

A jóia: José Luís Nunes

O José Luís é uma jóia. De médico. De pessoa. De amigo. Durante algumas semanas, foi o candidato, escolhido pelo PSD, à presidência da Câmara do Funchal. Por motivos pessoais, abandonou a corrida eleitoral. Não conheço as suas razões, mas sei que, neste meio, até os motivos pessoais são políticos. Politicamente pessoais, muito provavelmente pessoalmente políticos. Daqueles que pedem recato, mas que deixam no ar um aroma indisfarçável de embaraço partidário. Se dúvidas houvesse da dimensão da atrapalhação e da vontade em resolvê-la, isso ficou evidente na escolha do candidato que se segue - Jorge Carvalho. A indicação do segundo nome do governo para substituir José Luís Nunes é a cartada de um partido que reconhece o sarilho em que se meteu e, em resposta, avançou com a melhor carta ao seu dispor. Jorge Carvalho pode não livrar-se de ser a segunda escolha, mas não é um candidato de remedeio. Pelo contrário. É uma demonstração de força de um partido que não quis deixar qualquer margem para dúvida no dia das eleições. Ainda assim, a sensação que fica é que tudo isto poderia ter sido evitado. Para além de pessoal, a saída de cena de José Luís Nunes também é sintoma. Sintoma de um partido que, em matéria de autárquicas, continua a relegar as suas estruturas locais a meros figurantes, num processo onde deveriam ser as figuras centrais. Continuar a fazer política local de quatro em quatro anos e no abismo do calendário eleitoral, é a receita certa para o fracasso. Quanto ao José Luís, infelizmente, há cada vez menos espaço na política para pessoas com a sua desarmante forma de estar. Ele sai a ganhar, todos nós ficamos a perder.