Podem os donos de apartamentos construídos por cooperativas ter AL?
O caso das Residências Cortel no Funchal reacendeu um debate jurídico e político sobre a legalidade do Alojamento Local em habitações construídas com apoios públicos. A legislação não menciona explicitamente a proibição, mas há fundamentos relevantes a considerar. Fomos à lei, às decisões administrativas e aos princípios que regem a habitação a custos controlados para apurar a resposta.
A pergunta é legítima: se um proprietário adquire uma habitação construída ao abrigo de uma cooperativa, com apoios públicos que reduziram o custo da construção, pode depois transformá-la em Alojamento Local (AL)? A dúvida adensou-se nestes dias, quando se soube que três frações das Residências Cortel — um empreendimento promovido como habitação a custos controlados — estão registadas como AL e disponíveis em plataformas digitais. A questão divide interpretações, mas exige uma resposta com base legal e factual.
Em primeiro lugar, importa referir que, até à data, não existe nenhuma norma legal que proíba expressamente o registo de AL em habitações construídas com apoio público ao abrigo de programas de custos controlados. Esta omissão é reconhecida pela própria ACIF, que representa a Mesa deste sector específico empresarial madeirense: “Não há nada no quadro legal que diga que é proibido fazer AL neste tipo de empreendimentos”, afirmou o seu presidente. A lei vigente — incluindo a mais recente, o Decreto-Lei n.º 76/2024, que actualiza o regime jurídico do AL, estabelece que é possível requerer o registo de AL com base numa licença de utilização válida, sem distinguir entre imóveis com ou sem apoios públicos. O que a lei exige é que o uso esteja de acordo com o fim declarado e a afectação do imóvel.
Mas é precisamente aqui que a questão deixa de ser apenas legal para se tornar estrutural. A Cortel é um empreendimento com apoios públicos, inserido num regime de habitação cooperativa a custos controlados, o que significa que foram concedidas vantagens urbanísticas e financeiras com base num objectivo claro: o de promover habitação permanente e acessível.
A própria natureza da ajuda pública seja através de isenção de taxas, majoração de volumetria ou benefícios indirectos impõe obrigações ao destinatário, ainda que estas não estejam todas vertidas em legislação expressa. Como reconheceu a ACIF, através de João Abel Lucas, o cerne da questão está no “tipo de ajuda utilizado”, cuja finalidade era a habitação, não a prestação de serviços turísticos. Assim, o argumento da cooperativa para solicitar o cancelamento dos registos é fundado na desvirtuação do fim para o qual o apoio foi concedido.
É também por isso que, embora a lei nacional esteja omissa, o município poderia (e deveria) ter considerado este factor na emissão das licenças. As autarquias têm competência para avaliar a adequação dos pedidos de AL face à realidade urbanística, ao uso previsto das frações e aos compromissos assumidos no licenciamento original.
A presidente da Câmara do Funchal, Cristina Pedra, admitiu que será feita uma averiguação caso a caso e que, se houver provas de que o AL viola os pressupostos do apoio recebido ou da afetação contratual, as licenças poderão ser canceladas.
Outro ponto fundamental prende-se com os contratos cooperativos e os estatutos da entidade promotora. As cooperativas de habitação, de acordo com o Decreto-Lei n.º 502/99 e o Código Cooperativo (Lei n.º 119/2015), têm como fim garantir habitação própria e permanente aos seus cooperadores. Caso estes contratos estabeleçam que as frações são exclusivamente para habitação, a utilização como AL pode configurar violação contratual e justificar, por si só, a actuação da cooperativa, independentemente do que diga a legislação nacional sobre AL.
Quanto à legalidade dos registos efectuados, também aqui a ACIF foi clara: os documentos entregues foram os mesmos que se exigem em qualquer outro pedido de registo de AL. Isso indica que o procedimento formal foi cumprido, mas não afasta a discussão sobre a legitimidade substancial da atividade, face à natureza do imóvel e aos apoios recebidos.
Por fim, o próprio Decreto-Lei n.º 76/2024 mantém o poder das câmaras para criar zonas de contenção ou aplicar critérios adicionais de autorização, inclusive com base em mapeamentos e objetivos de política habitacional. Isso significa que, mesmo na ausência de uma norma geral proibitiva, os municípios podem e devem regulamentar situações como a da Cortel de forma preventiva e articulada com os seus objectivos urbanísticos e sociais.
Para fecho de conversa, a legislação nacional não proíbe expressamente o AL em empreendimentos de habitação cooperativa com apoio público, o que permite, formalmente, o registo desde que a licença de utilização seja válida. No entanto, há uma incompatibilidade substancial entre a actividade de AL e os objectivos dos apoios concedidos, o que pode justificar a revogação das licenças com base em violação da finalidade pública, dos contratos cooperativos ou da afectação urbanística.
A prática está legalmente admissível, mas choca com o espírito das políticas públicas de habitação e com o compromisso dos beneficiários com o interesse coletivo. Por isso, dizer que os proprietários podem, pura e simplesmente, fazer AL nestas fracções é, à luz de todos os factos e fundamentos, é impreciso.