Romãs
“Aquele tempo” era tão diferente para mim como são todas as nossas peripécias e aventuras dos anos em que não havia telemóvel e internet
A árvore resiste e há anos que está lá, na fazenda do lado da cozinha, mais ou menos ignorada por nós. A pessoa que a plantou morreu, a última habitante da casa vive num lar, mas todos os anos a romãzeira dá fruto. São umas romãs tortas, tocadas pelos rigores do tempo, que brilham ao sol de Outono, quando os dias ficam mais curtos. Antes disso, no calor do Verão, as flores vermelhas enchem de cor a herança dos meus bisavôs, dos meus avôs e das minhas tias.
Aqui e ali, naquela fazenda onde havia latadas de vinha e ameixeiras, sobrevivem várias pitangueiras e um abacateiro com muita idade. A buganvília vermelha floresce por cima da cozinha a lenha e do entulho que ficou para trás, nas várias camadas das pessoas que ali viveram. Há uma parte de mim naquele jardim seco e debaixo das anoneiras e toda a infância do meu irmão, o rapazinho que veio morar com as tias e era o neto mais amado do meu avô.
E, antes de nós, há memórias do meu primo Vítor, que é parte da primeira geração de netos e sobrinhos e tem fotografias na levada, com as minhas tias ainda novas e com a minha prima Ana, de tranças grossas. Ela foi a neta mais amada da minha avó e quando cortou o cabelo as tranças ruivas foram guardadas. Acho que foi a maneira de guardar parte dessa menina das fotografias, de ficar com um bocado da infância dentro de uma gaveta.
Eu não tive tranças, nem avós dedicados e não sei se teriam gostado daquela miúda gordinha e curiosa, que ouvia tudo e queria saber tudo. Fui a última dos netos e guardo imagens mais ou menos vagas do meu avô sentado à porta do quarto da televisão ou da minha avó Alexandrina a afugentar os gatos da cozinha com um vime. As histórias que sei foram contadas na roda do bordado, quando, em dias de leste, daqueles de muito calor, as minhas tias e a minha mãe aproveitavam a sombra da ameixeira da entrada e decidiam falar do passado.
“Aquele tempo” era tão diferente para mim como são todas as nossas peripécias e aventuras dos anos em que não havia telemóvel e internet. Entre as minhas tias e nós havia um fosso onde cabia a vida sem electricidade, sem água potável em casa, sem duche para tomar banho e ainda se podia incluir o medo da II Guerra Mundial e a saudade dos que embarcavam para o Brasil e para a África do Sul.
O nosso futuro ia ser diferente. Não me lembro se tinha uma ideia de como seria, se passava por aquela casa e pela fazenda ou se me parecia que estariam assim sempre, com a latada da vinha tratada, as árvores frondosas e verdes, cuidadas pela mão da minha tia Teresa. E as mãos invisíveis que mantinham tudo no lugar onde devia estar viveriam sempre. A minha tia Teresa morreu há 15 anos e pouco voltou a ser como era. A ameixeira da entrada foi cortada e a fazenda saiu dos eixos, mas todos os anos a romãzeira que plantou dá frutos.