Mobilidade: “[Os governos socialistas] nunca fizeram nada”?
“[Os governos socialistas] nunca fizeram nada [pela mobilidade aérea da Madeira]”. A frase, dita por Miguel Albuquerque, não é nova, mas volta a ganhar força sempre que se reacendem os atritos entre Funchal e Lisboa. É uma acusação contundente, carregada de ressentimento institucional, que encontra eco entre os que veem na República um parceiro distante e pouco sensível à insularidade. Mas será que, neste caso, a crítica tem fundamento? Foram realmente os executivos do Partido Socialista omissos ou inactivos perante um dos temas mais sensíveis da vida quotidiana dos madeirenses?
Para responder, é preciso recuar a 2015, liderança do governo estava Pedro Passos Coelho. Em final de mandato, o Governo PSD/CDS aprovou o actual modelo de Subsídio Social de Mobilidade (SSM). Na prática, os residentes passaram a pagar o bilhete de avião por inteiro e a pedir reembolso ao Estado, até ao limite de 400 euros, sendo o valor final a suportar de 86 euros por viagem de ida e volta. Mas o modelo vinha com uma nota de rodapé que deu que falar: no Orçamento do Estado, foi inscrito um valor de referência de 11 milhões de euros como dotação orçamental para cobrir essa despesa.
Este valor tornou-se rapidamente no centro da discórdia. Seria um tecto? Um limite absoluto? E se a procura disparasse, quem pagaria a diferença? O tema entrou na política regional com força. A 26 de Agosto de 2015, o deputado socialista Carlos Pereira apontava “a irresponsabilidade” do Governo PSD ao lançar um modelo sem garantias de cobertura. Já em Setembro de 2016, Jaime Leandro, líder parlamentar do PS-Madeira, acusava: “O PSD está preocupado com a circunstância de o limite dos 11 milhões, criado pelo próprio, poder estar a ser esgotado”. Também o Bloco de Esquerda levantava dúvidas. Roberto Almada temia que a verba esgotasse rapidamente, obrigando a Região a assumir os custos remanescentes.
Mas a realidade orçamental acabaria por desmentir o alarme. Nunca nenhum passageiro deixou de ser reembolsado por se ter ultrapassado esse valor. Desde 2016, o montante pago pelo Estado aos beneficiários do SSM não parou de crescer: cerca de 20 milhões em 2017, mais de 25 milhões em 2018, e cerca de 27 milhões em 2019. Não houve cortes. Não houve exclusões.
Mais ainda: em 2019, já com António Costa como primeiro-ministro, a menção ao valor de 11 milhões desapareceu dos documentos orçamentais. Não houve anúncio formal, nem uma portaria com selo mediático, mas a verdade é que a cláusula deixou de existir como referência oficial. Se era um tecto, foi ignorado. A prática orçamental substituiu o ruído político.
A isto soma-se a modernização do processo. Foi também com os governos do PS que se iniciou a digitalização dos pedidos de reembolso, permitindo aos residentes tratarem do processo online e sem depender dos balcões dos CTT. A medida reduziu tempo, deslocações e burocracia, simplificando a vida de milhares de madeirenses. Em paralelo, os orçamentos do Estado passaram a reflectir valores mais ajustados à procura real, que em 2023 já superava os 35 milhões de euros.
É justo dizer que o modelo actual permanece imperfeito. Muitos consideram inaceitável que o passageiro tenha de suportar o custo total da viagem antes de ser reembolsado. As críticas são legítimas e há muito foram apontadas, até mesmo pelos partidos de esquerda, que propuseram, sem sucesso, soluções alternativas como a tarifa reduzida à partida. Mas daí a afirmar que “nunca fizeram nada” vai uma distância.
Os governos socialistas não criaram o modelo. Isso é verdade. Foram críticos do mesmo desde o início e, em vez de o substituir, preferiram ajustá-lo e mantê-lo. É um ponto fraco que merece ser debatido. Mas também é verdade que nunca deixaram cair o apoio, nunca aplicaram o suposto limite de 11 milhões, e foram responsáveis por melhorias operacionais visíveis e sustentadas.
Dizer que “nunca fizeram nada” é, por isso, uma frase imprecisa, simplifica em excesso, ignora o que foi feito e distorce a cronologia política dos factos. Albuquerque tem razão ao exigir mais. Mas não tem razão ao negar o que já foi feito.
IMPRECISO
A acusação do presidente do Governo Regional não é totalmente verdadeira. Os governos socialistas não foram os arquitectos do modelo, mas foram gestores activos da sua evolução. Não revolucionaram a mobilidade aérea, mas anularam o receio do limite orçamental, modernizaram o sistema e reforçaram o compromisso financeiro com os madeirenses. Não fizeram tudo. Mas fizeram o suficiente para que a frase de Albuquerque não resista ao teste da precisão.