O corte de 5% nos salários dos políticos foi imposto pela troika?
A redução de 5% nos vencimentos dos titulares de cargos políticos foi uma das medidas mais simbólicas da austeridade em Portugal. Mas afinal, foi imposta pelas instituições internacionais no âmbito do resgate financeiro? Ou foi o Governo de José Sócrates que a decidiu antes da intervenção da troika [Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional)]? A resposta está na lei.
Em 2010, Portugal enfrentava um cenário de agravamento das contas públicas. O défice orçamental disparava, a dívida crescia e os mercados internacionais punham em causa a sustentabilidade financeira do país. Foi neste contexto que o Governo liderado por José Sócrates apresentou o Programa de Estabilidade e Crescimento III (PEC 3), onde constava uma medida inédita: o corte de salários na Administração Pública, incluindo os titulares de cargos políticos. Uma medida anunciada pelo então primeiro-ministro e pelo ministro das Finanças.
Essa decisão foi formalizada no Orçamento do Estado para 2011, aprovado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro. No seu artigo 19.º (sob o título “Redução remuneratória”), o legislador estabeleceu: “É reduzida, a partir de 1 de Janeiro de 2011, a remuneração total ilíquida superior a 1.500 euros dos trabalhadores que exercem funções públicas, numa percentagem entre 3,5% e 10%, aplicável de forma progressiva”; “É reduzida em 5% a remuneração base mensal dos titulares de cargos políticos e dos altos cargos públicos, incluindo os gestores públicos”.
A entrada em vigor dessa lei foi fixada para 1 de Janeiro de 2011, o que significa que o corte foi decidido antes de qualquer intervenção externa.
O memorando de entendimento com a troika só foi assinado mais tarde, em 17 de Maio de 2011, após o pedido de ajuda feito por Portugal em Abril do mesmo ano. A redução salarial, incluindo o corte de 5% para cargos políticos, já estava em vigor nessa data. Não foi uma imposição das instituições internacionais, mas sim uma medida tomada autonomamente pelo Governo da República, com aprovação da Assembleia da República.
O memorando da troika, publicado oficialmente no Diário da República através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2011, de 17 de Maio, não impõe essa medida específica. Reconhece a existência de cortes salariais como parte do ajustamento orçamental já em curso. Ou seja, a troika herdou a medida, mas não a exigiu.
O corte viria a manter-se nos anos seguintes. O Governo liderado por Pedro Passos Coelho reforçou as políticas de contenção orçamental e prolongou os cortes. Já com o Governo de António Costa, iniciado em 2015, iniciou-se uma reversão faseada das reduções salariais para os trabalhadores do Estado. No entanto, o corte de 5% para titulares de cargos políticos manteve-se inalterado.
A revogação definitiva da medida só foi concretizada com o Orçamento do Estado para 2024, aprovado pela Lei n.º 82/2023, de 29 de Dezembro. No seu artigo 25.º, a lei determina: “É revogado o artigo 12.º da Lei n.º 75/2014, de 12 de Setembro, e demais disposições legais que determinam a aplicação de reduções remuneratórias aos titulares de cargos políticos e aos titulares de altos cargos públicos”.
Dessa forma, a partir de 1 de Janeiro de 2024, deixou de vigorar o corte de 5% nos vencimentos dos políticos. Durante este período, o Tribunal Constitucional também se pronunciou sobre as reduções salariais na Administração Pública. Em vários acórdãos, nomeadamente os n.ºs 396/2011, 602/2013 e 413/2014, o TC considerou admissíveis essas reduções enquanto medidas excepcionais e temporárias, mas alertou para a necessidade de reposição da normalidade remuneratória quando cessasse a situação de emergência financeira.
Em resumo: o corte de 5% nos salários dos políticos não foi imposto pela troika. Foi uma decisão do Governo de José Sócrates, aprovada no Orçamento do Estado para 2011 através da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2011, ou seja, mais de quatro meses antes da assinatura do memorando de assistência financeira com as instituições internacionais. A revogação só ocorreu com a Lei n.º 82/2023, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento para 2024. A narrativa de que a medida foi imposta de fora não encontra respaldo na legislação nem nos documentos oficiais.