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Crónicas

1989

A única pessoa que viveu esse ano com o coração nas mãos fui eu, a Lina Marta. E por ter metido na cabeça que a minha felicidade, o meu futuro, em suma, a minha vida, dependia de entrar ou não na universidade

Foi o ano em que fiz 18 anos, o primeiro em que votei, o mesmo que nos fez campeões do mundo de futebol de sub-20 em Riade e do Verão em que milhares de alemães de leste atravessaram a fronteira da Hungria com a Áustria atrás da liberdade. No fim, o muro caiu e, lá em cima, na nossa casa do Laranjal, todos acreditámos que o mundo ia ser outro e muito melhor. E não foi apenas pelas imagens em direto ou por causa da política, acho que não existia espaço para outro sentimento a não ser a esperança.

Tudo ia ser melhor e por vários motivos. O meu pai ganhava melhor e a minha mãe conseguira aumentar a reserva de notas de cinco contos que guardava debaixo do forro da primeira gaveta da cómoda. A única pessoa que viveu esse ano com o coração nas mãos fui eu, a Lina Marta. E por ter metido na cabeça que a minha felicidade, o meu futuro, em suma, a minha vida, dependia de entrar ou não na universidade. O plano era bom, mas ninguém me preparou para angústia da espera.

E deu-se o caso daquele ter sido também um ano complicado, até para os padrões dos anos 80. Fomos primeiro chamados a uma experiência a que deram o nome de prova geral de acesso, depois às provas específicas. Em Agosto, enquanto os alemães de leste iam de férias à Hungria para passar a fronteira, eu achei que o pior tinha passado e decidi aproveitar o calor. Às vezes, a meio da noite, o medo infiltrava-se nos sonhos e eu acordava a pensar que me tinha enganado nos códigos dos cursos no impresso da candidatura ou então via o ‘não admitido’ à frente do meu nome.

Não sei o que teria sido de mim se isso tivesse acontecido, seria outra pessoa, com outra vida e outra história. As pessoas devem ter um plano B, mas eu só tinha aquele: Comunicação Social, Lisboa. E sofri muito, acho que na mesma medida e com a mesma intensidade como imaginei a universidade, a cidade grande e tudo o que ia ser e acontecer lá, nesse futuro que estava a chegar e me parecia impossível de alcançar. E, de facto, demorou o que me pareceu ser uma eternidade.

Os professores do ensino superior entraram em greve e as nossas provas ficaram por corrigir num braço de ferro que somou dias, semanas e meses, enquanto um Outono chuvoso caía sobre a fazenda, a casa do Laranjal e a minha disposição. Eu arrastava-me pela casa, lia até o tédio ganhar e ficava a ver a chuva a cair no quintal pelo postigo da porta do corredor. E eu estava ali, numa espécie de maldição, um nó cego que me atava e me impedia de ir além da curva de caminho em que tinha vivido sempre.

Não me lembro de ter tido tanto tempo livre, tantas horas para ler, para ir ao cinema ou praia, nem voltei a sentir aquela angústia, a sensação de estar parada, à espera, e de saber que não havia como mudar os resultados. O primeiro ano da minha maioridade foi o mais lento da minha adolescência, um momento para deixar ir a Lina Marta e deixar entrar a Marta, a miúda da Madeira que nunca tinha visto Lisboa e queria tirar um curso de comunicação social. E estava ansiosa, com pressa de ir, de se libertar da asa protectora da mãe e ser dona de si, dos primeiros passos nessa aventura de ser adulta.