Da Escola e do “bullying”
1. A Escola só precisa de pensar.
[O delírio tecnológico do Governo mata o que resta de inteligência nas salas de aula]
O Sr. Secretário de Educação anunciou um projecto-piloto para experiência de utilização de Inteligência Artificial (IA) por parte de alunos e professores, já no próximo ano. Disse-o com aquele ar iluminado de quem descobriu a electricidade, com a voz a roçar o entusiasmo dos que confundem novidade com avanço, progresso com ruído, como se meter inteligência artificial na sala de aula fosse o mesmo que meter inteligência nos cérebros ou juízo nos currículos. Há alunos que choram porque não sabem escrever uma carta, alunos de olhos vazios diante de um texto de Eça, alunos que confundem Camões com um influencer de fitness. Não é a IA que lhes falta. É humanidade. É chão. É miolo. É a sujidade luminosa de quem pensa por si, mesmo que pense mal.
A escola não precisa de Inteligência Artificial.
Precisa de qualquer coisa mais antiga, mais funda, mais triste talvez, mas verdadeira. Precisa de inteligência funcional, essa que não se aprende nos “tablets”, nem nos ecrãs, essa que vem de errar muitas vezes, de rasurar a página, de dizer “não percebo” e ficar a olhar para o chão durante minutos até perceber. A escola precisa de alunos que saibam fazer contas com os dedos, sem aquela tralha electrónica toda, que leiam devagar e se percam a meio de um parágrafo mas voltem atrás, que não tenham vergonha de escrever com letra feia ou de confessar que têm medo de poesia. Porque a escola não é um circo com hologramas, é um lugar de persistência e paciência.
A inteligência funcional parece um bicho extinto, uma espécie de pardal desgraçado que já não se vê nos beirais das janelas das escolas. A inteligência funcional não brilha. Rói. Corrói. Mastiga as dúvidas devagar, como quem chupa um caroço de ameixa. E não tem lugar nestas salas aonde a IA se senta no lugar da frente e dita o que é importante, o que é certo, o que é eficiente. Como se aprender fosse uma linha recta, como se crescer fosse um programa, como se houvesse algoritmo que ensine a ser homem.
Os professores, coitados, ajoelham-se. Dizem “sim senhora, que maravilha”, como quem aceita o diagnóstico de um tumor. Porque vem tudo embrulhado em palavras com brilho: inovação, personalização, interactividade, como se as crianças fossem comandos de televisão, como se a escola fosse um “call center”. Mas ninguém pergunta se os miúdos estão a pensar. Pensar de verdade. Pensar até doer. Pensar até querer sair da sala e ir fumar às escondidas no recreio.
A IA não pensa. Copia o pensamento dos outros, faz aquele barulho limpo e estéril das máquinas de lavar, sem manchas, sem cheiros, sem carne. A IA não sabe o que é duvidar. Não treme. Não sua. Não perde noites a pensar num problema de álgebra como quem pensa numa paixão. A IA responde. Mas quem responde depressa não ouve. E a escola devia ser sobretudo um lugar de escuta. Das ideias, dos medos, do barulho que há na cabeça de um adolescente calado no fundo da sala.
Os alunos, esses, aprendem a correr. A simular. A parecer sabidos. Sabem pesquisar, mas não sabem escolher. Sabem debitar, mas não sabem digerir. Sabem escrever com palavras bonitas, mas não sabem o que querem dizer. Porque ninguém lhes ensinou a pensar com as mãos, com os olhos, com o estômago. Porque ninguém lhes disse que pensar é sujo, é lento, é quase sempre inútil, até que, de repente, se torna indispensável.
A escola precisa de professores que saibam errar com os alunos. Que saibam ficar calados quando não sabem. Que saibam dizer “recomeça”, “lê outra vez”, “essa frase não está bem”, “essa ideia ainda não está pronta”. A escola precisa de tempo. Tempo para não entender. Tempo para repetir. Tempo para fazer figuras tristes. Tempo para se levantar do chão e tentar outra vez. Porque sem isso não há aprendizagem. Há performance. Há teatro. Há fingimento.
E depois, claro, há os adultos todos contentes com a modernidade. A dizerem que agora é tudo mais rápido, mais eficaz, mais bonito. Como se a rapidez fosse sinal de inteligência. Como se ensinar fosse actualizar uma aplicação. Como se a educação fosse um programa de fidelização.
Mas não é.
É carne.
É osso.
É cansaço.
É falhar e tentar outra vez.
É um miúdo a perguntar “porquê?” e o professor a responder “não sei, vamos ver”.
É uma rapariga a escrever um poema sobre a mãe.
É um rapaz a perceber, pela primeira vez, que não sabe ler.
É tudo isso. E mais. E se a escola não for isso, não é nada.
É um teatro de marionetas com luzes “LED”.
É um palácio de vidro onde ninguém se ouve.
É um laboratório onde se mata, devagarinho, a capacidade de pensar.
E o pior é que ninguém repara.
2. Virar a cara, ou a arte de fazer de conta que não se vê.
Há um momento… talvez nem seja bem um momento, talvez uma espécie de coisa suspensa no tempo, como aquelas tardes de domingo em que se ouve o frigorífico a respirar na cozinha, a casa está vazia e o pai ainda não voltou do café onde diz que foi ler o jornal. Há um momento em que uma criança, um rapaz magro, pálido, com um lanche amarrotado no bolso, se encolhe na carteira e outro, mais largo, mais filho do pai que o vem buscar de carro e buzina antes de sair, se agiganta no corredor, e nesse instante, se é que se pode chamar instante a uma coisa assim, densa, lenta, embaciada, a escola, o director, a professora de francês, a auxiliar com os joanetes a doer-lhe e os olhos cansados, toda a escola vira a cara como quem vira uma página de um livro aborrecido.
Não por mal. Nunca por mal. Ninguém faz mal por mal. Fazem-no por medo. Medo de dizer ao senhor doutor que o filho dele, aquele rapaz simpático que toca piano, anda a meter os dedos no pescoço dos outros meninos. Medo de desagradar à senhora engenheira que escreve e-mails sobre a filha, por tudo e por nada, com muitos pontos de exclamação. Medo de se meterem em sarilhos. E então calam-se. Fingem que não viram. Que o empurrão foi sem querer, que os risos no balneário são brincadeiras, que as mensagens no telemóvel com insultos e ameaças são fruto da imaginação do rapaz pálido que já quase não fala e cuja mãe, com olheiras fundas, pede reuniões em que ninguém tem tempo para estar.
Dizem que é “bullying”, essa palavra inglesa que soa a detergente, a coisa de relatório com gráficos e estratégias de intervenção. Mas o nome não interessa, nunca interessou. É a crueldade antiga dos pátios. A violência herdada dos pais e das casas e das frustrações que vêm da noite e se instalam nas mãos e nas palavras. E a escola, que devia ser trincheira e abrigo, rede e bússola, transforma-se num palco de cobardias. Os professores, tantos deles exaustos, tantos a contar os dias para a reforma, preferem não ver. Os directores calculam danos. Os funcionários baixam os olhos. E os pais, os senhores pais, incapazes de conceber que o seu menino, o mesmo que lhes dá um beijo antes de dormir, seja um carrasco em miniatura, indignam-se, protestam, exigem. E então a escola recua. E depois cala-se.
Fala-se muito de comunidade educativa. De todos juntos, de um corpo coeso, de uma família alargada com objectivos comuns. Bonito, sim. Tão bonito como uma frase num folheto institucional. Mas a verdade, e a verdade custa, é que não há comunidade nenhuma. Há medo. Há desconfiança. Há a tutela que manda, mas não conhece, que legisla, mas não ouve, que exige, mas não dá. Porque autonomia é uma palavra perigosa. Porque uma escola autónoma é uma escola que pensa. E uma escola que pensa é uma ameaça. Uma escola que decide. Uma escola que age. Uma escola que se insurge. E isso não se permite. Não nesta terra de diretivas e receios, de gráficos e de pareceres, de silêncio institucionalizado como se o silêncio fosse solução.
E assim o rapaz pálido continua a encolher-se. E o outro continua a crescer. E todos fingem que está tudo bem, que são coisas de miúdos, que o tempo cura, que o mundo é assim. Até que um dia não é. Até que um dia o rapaz pálido não aparece. Ou aparece, mas já não é ele. É outro. E então choram-se lágrimas tardias, lavam-se as mãos, convocam-se conferências, juram-se mudanças.
Mas já é tarde. Porque virar a cara é também virar as costas. E a escola, quando vira as costas, não é escola. É só um edifício onde se espera que o tempo passe. Onde se aprende, desde cedo, que o silêncio protege quem agride. E que quem grita por socorro grita sozinho.