A moral fragmentada nas democracias de hoje
Por mais que celebremos os méritos da diversidade e da liberdade, há uma pergunta que começa a impor-se com uma força crescente: como pode uma democracia funcionar quando os seus cidadãos já não partilham valores ou princípios morais mínimos?
Jonathan Haidt, psicólogo social e autor de referência no estudo da moralidade e polarização política, conhecido pela Teoria das Fundações Morais, identificou seis pilares fundamentais da moral humana: Cuidado, Justiça/Equidade, Lealdade, Autoridade, Santidade (de normas morais e culturais elevadas) e Liberdade. Tem alertado sobre os perigos de uma sociedade demasiado fragmentada, onde a diferença moral se transforma num obstáculo à convivência democrática.
Estes fundamentos, presentes em todas as culturas, são valorizados de diferente forma consoante o grupo e a ideologia. E esta divergência não é trivial. Significa que, frequentemente, as pessoas não discordam apenas sobre políticas ou prioridades, mas vivem em universos morais distintos. Por exemplo, a esquerda progressista tende a centrar-se sobretudo no Cuidado, Justiça social e Liberdade— ex: a defesa das minorias, das liberdades individuais e das igualdades, com menos foco nos outros fundamentos, por vezes vistos como fontes de conformismo ou discriminação. Já a direita conservadora tende a distribuir mais a sua atenção moral por todos os fundamentos, como o Cuidado (não universalista, mas com foco em grupos mais próximos, como a nação), e a Justiça (mais no sentido de mérito, proporcionalidade e ordem, em vez de igualdade absoluta), mas com especial enfoque na Lealdade ao grupo, o respeito pela Autoridade e a valorização da tradição e da coesão cultural (Santidade).
Este desencontro profundo contribui para a polarização crescente, dificultando o diálogo, o compromisso e o funcionamento saudável da democracia.
É neste contexto que Haidt coloca em causa uma das ideias mais queridas da esquerda progressista contemporânea: a do cosmopolitismo moral. A crença de que pessoas de todas as culturas, credos e sensibilidades podem viver em paz numa democracia pluralista é, sem dúvida, nobre. Mas, avisa Haidt, essa convivência só é possível se existir uma base moral partilhada - uma “cola cívica” que una o tecido social. Quando essa base se perde, cresce a desconfiança, a radicalização e o ressentimento.
Haidt é particularmente crítico do papel das redes sociais, e dos algoritmos que reforçam a tribalização moral e a desumanidade do outro. Ao mesmo tempo, critica também a forma como certos ambientes académicos/educativos desincentivam o confronto saudável de ideias, privilegiam visões morais mais progressistas, e preferem muitas vezes proteger os jovens de qualquer desconforto moral, em vez de os preparar para uma cidadania pluralista.
O que Haidt defende é que levemos a sério a necessidade de um terreno moral mínimo que permita o debate democrático, e de um “sagrado coletivo”: símbolos e histórias que dão sentido à vida em comum. Propõe o reforço da educação e pilares cívicos, realça o ensino da língua e da História, o cultivo do pensamento crítico e, sobretudo, a promoção de espaços onde diferentes visões possam dialogar sem medo nem agressividade.
Não basta respeitar as regras do jogo democrático e do enquadramento jurídico-legal para um contrato social sólido, se não reconhecermos os outros como parte legítima do mesmo jogo. Se deixarmos que as diferenças morais nos dividam ao ponto de já não reconhecermos os outros como “um de nós”, então a democracia perde o chão onde assenta.
O verdadeiro teste da democracia moderna pode não estar na sua capacidade de incluir mais diversidade, mas sim na sua capacidade de sustentar essa diversidade sem perder a coesão. Jonathan Haidt não oferece respostas fáceis, mas ajuda-nos a fazer as perguntas certas. E talvez, no mundo em que vivemos, isso já seja um ato profundamente democrático.