Que cumpramos o seu legado maior!
“Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende nem segue(...) Possivelmente, é porque (...) reduziram a política, - ou a fé, à retórica”
In “Evangelii Gaudium”
É difícil resistir, por pouco que seja, a dizer algo sobre o Papa Francisco.
Apesar de jamais o ter visto, senão na televisão.
E mau grado também ter sido influenciado, religiosamente, por um quadro mais ecuménico do que católico apostólico romano. Decorrente de uma ascendência, a este nível e do lado materno, com outras e diferentes matrizes que não só cristãs, e, do lado paterno, por serem nada ou muito pouco praticantes (salvo a minha avó).
Mas e apesar das circunstâncias, a verdade é que o “conheci”, em 2013, logo após a sua escolha para ocupar a cadeira de Pedro.
Por uma feliz circunstância. Um amigo, que sabia desse nosso sentir, mais lato, sobre a questão religiosa (mas também mística, já que não é impunemente que se nasce em África), aconselhou-me a leitura dos diálogos do, até então, Cardeal de Buenos Aires, com o Rabino da mesma cidade argentina, Abraham Skorka, diálogos esses que foram publicados com o título “Sobre o Céu e a Terra”.
Neste livro e apesar das suas diferenças, ambos defendem um conjunto de valores e perspetivas idênticas sobre os mais variados temas da vida, da sociedade e do mundo.
Um desses entendimentos comuns foi, aliás, um dos lemas (e ações) maiores de Francisco, neste particular expresso pela necessidade imperiosa de uma “cultura de encontro”, por oposição à existência, no mundo, de mais “construtores de muralhas do que de pontes”. Cultura de encontro alargada e perspetivada a todos os níveis da sociedade, pelo que defendiam que havia que baixar a guarda, garantindo a receção cordial a todos e jamais se fazendo condenações prévias.
Alertavam também, ambos, nessas suas conversas, para a ideia de que “a fé exige, necessariamente, a dúvida”. Pelo que o papel de todos os líderes religiosos seria o de jamais se assumirem como autosuficientes, outrossim, aceitarem, humildemente, todas as interrogações, salvo, naturalmente, sobre o poder matar-se em nome de Deus, que mais não é do que “fazer da experiência religiosa uma ideologia (...) uma blasfémia”.
Já Papa e noutro contexto, também a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium[1], logo em 2013 (24 de novembro), me deu a conhecer melhor quem era Francisco.
Nela, o Papa remete-nos para questões centrais ao mundo moderno, como o individualismo exacerbado e o hiperconsumismo, de que uma das consequências mais visíveis é a degradação dos recursos da Terra, Casa Comum da Família Humana (como gostava de dizer).
Mas também para a constatação (e contestação) de uma economia de exclusão e de desigualdade social. Que, em termos de imagem e com o poder simbólico subjacente, se atreve a situar ao nível de “não matarás”, pelas consequências inerentes e em que, como diz, “os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’”. Economia essa cujo desequilíbrio maior, advoga, “provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados (chega a alertar para a sua divinização) e a especulação financeira”, bem como a negação do direito de controle dos Estados, não deixando de fazer notar o impacto da globalização no plano económico, mas também na “acelerada deterioração das raízes culturais” que aquela induz.
Dito isto e para além de desafiar os que ainda o não fizeram, a lerem (pelo menos) esses dois documentos, uma palavra sobre o seu pensamento sobre educação. Ancorado mais em valores do que em competências. Bergoglio sustentava que, para que o fosse de facto, deveria “ensinar a pensar criticamente”. Ou e no seu modo mais sensível, que deveria ensinar todos e cada um, “que o que se fazia, deveria ser coerente com o que se sentia e com o que se pensava”.
Exatamente como ele o demonstrou, ao longo da sua caminhada.
Que todos nós, que tanto o exaltamos por estes dias, saibamos manter-nos coerentes com o que ora sentimos e pensamos, agindo também em conformidade.