O deputado de papelão e a tragédia de um título com pernas
1. O deputado de papelão e a tragédia de um título com pernas.
Francisco Gomes, esse, o do Chega, o que se sentou na RTP/Madeira com o peito cheio de cheiros e títulos como quem traz um brasão bordado no suor das axilas, exigiu que o tratassem por deputado num debate, como se ser deputado fosse uma vocação eterna, uma espécie de unção com óleo grosso e viscoso, uma dessas funções que se agarram ao corpo como moléstia de pele, como lepra institucional, como se o senhor deputado, escute-se bem: deputado, estivesse ungido por alguma graça particular, talvez divina, talvez apenas ridícula.
Disse isso assim, com a cara de quem espera palmas, com a pompa de quem desce escadas em câmara lenta num filme mau dos anos oitenta, com a solenidade de um padre embriagado a recitar salmos de memória diante de uma plateia sonâmbula. Exigiu ser tratado por deputado, como quem exige ser tratado por doutor, engenheiro, duque, marquês, por vossa excelência, por eminência reverendíssima. E eu ali, a vê-lo no ecrã, com vontade de lhe oferecer um espelho e um estetoscópio de brincar, para que nos diagnosticássemos mutuamente: ele a si, como paciente terminal do ego; eu a ele, como caricatura de si próprio.
Porque o senhor deputado Francisco Gomes, coitado, não entende, ou não quer entender, que num debate entre candidatos ninguém é mais que ninguém, que ali, naquela arena de carne e suor e microfones gastos, o título se despe, o cargo se encosta ao cabide e só resta a ossada das ideias, a ossada das palavras, a ossada da convicção. Mas ele não, ele queria ser tratado como uma coisa especial, como um monólito rodeado de espelhos, como um altar portátil do regime do disparate.
Não foi arrogância. Arrogância é outra coisa. Isto foi um pedido de socorro. Um pedido de quem sabe que sem o “deputado” antes do nome volta a ser apenas Francisco Gomes, aquele que ninguém ouvia antes de ter lugar na fila do pão institucional, aquele que sem mandato é só silêncio e caspa sobre os ombros. Queria ser tratado por deputado como quem pede que lhe passem a mão no cabelo, como quem precisa de um rótulo para não ser confundido com a prateleira vazia.
E enquanto ele falava, com os olhos semicerrados de importância, pensei no país, neste país com a mania das hierarquias de plástico, das reverências de papel, dos crachás que brilham mais que os cérebros. Pensei na doença da liturgia política, nos bois que se confundem com os títulos, nos títulos que pastam com os bois, e nas vacas sagradas que se julgam eternas só porque já uma vez lhes chamaram qualquer coisa com maiúscula.
Era só um debate. Mas ele quis que fosse corte. E não lhe chegou a palavra: quis o tapete. E se lhe tivessem dado um trono, sentava-se. E se lhe tivessem dado incenso, tragava. E se lhe tivessem dado espelhos, beijava-se neles. Porque o senhor deputado, no fundo, é só isso: um homem com fome de aplausos, a tentar convencer-se de que ainda lá está, mesmo se depois de o povo o mandar descer.
2. Há pessoas que nunca saíram da ilha.
E não falo somente de não terem apanhado o avião, o barco, o ferry que nunca mais vem e que imaginamos com cheiro a gasóleo e bananas verdes nos porões, falo de não terem saído da ilha com o corpo inteiro, com os olhos, com a cabeça, com o que ainda resta de alma depois de anos a viverem entre os mesmos nomes, as mesmas famílias, as mesmas janelas. Nunca saíram e julgam que o mundo começa na tasca ao pé da escola e acaba no beiral da igreja onde as pombas fazem ninho há quarenta anos, julgando que Paris, Nova Iorque ou Lisboa não passam de versões aumentadas do centro do concelho, com mais trânsito, mais arrumadores e menos educação.
Nunca saíram e falam com a autoridade de quem não sabe.
Com a firmeza dos ignorantes. Com a certeza dos que nunca duvidaram porque nunca viram, nunca cheiraram, nunca escutaram uma língua que não a deles, uma música que não lhes fosse familiar, uma luz diferente da que vem do Atlântico a bater nas costas do convento abandonado.
O mundo, para eles, é o que conseguem ver do miradouro, e mesmo isso depende da limpeza dos óculos. E isto, se quisermos ser cruéis e justos (e às vezes é preciso ser-se cruel para ser-se justo), não é mundo, é maqueta, é boneco, é cenário onde as cadeiras estão todas coladas ao chão para ninguém fugir.
Lembro-me do homem que estava tão perto do elefante que pensava estar encostado a uma parede. Tão perto que o cinzento da pele se confundia com o céu, com os muros, com a infância. Tão perto que o cheiro era o de sempre. Tão perto que as rugas do flanco lhe pareciam dunas.
E ali ficou, toda a vida, convencido de que aquilo era o mundo. Uma parede quente, macia, às vezes húmida, às vezes com moscas. Não soube nunca que era um animal. Não viu a tromba, não viu as presas, não viu os olhos.
Nestas ilhas é igual. Ouvem-se os mesmos discursos desde 1976, com ligeiras variações, como quem muda o casaco ao mesmo actor. Usam-se palavras que se gastaram de tanto serem repetidas.
Autonomia.
Continuidade.
Subsídio.
Sustentabilidade.
Estabilidade.
E o povo escuta, bate palmas, depois volta a comer milho frito como se tivesse ouvido algo novo, algo decisivo, algo que muda a história.
Mas a história não muda. A história por cá é como os relógios de parede das casas velhas: continuam a fazer tic-tac, mas já não marcam a hora certa.
Afastar-se é ver. Afastar-se é perceber que o que tomávamos por realidade era ilusão. Afastar-se é a única forma de amar sem ingenuidade, de criticar sem ressentimento. Afastar-se é dizer ao ouvido da Madeira: és bonita, mas estás enganada. És nossa, mas és pequena. És casa, mas não és mundo.
E por isso, às vezes, temos de sair. Para ver o elefante todo. Para perceber que há mais vida para lá do pasto, para lá do beco, para lá da infância. Para não morrermos convencidos de que vivemos, quando apenas passámos a mão pela pele do bicho sem nunca lhe ver os olhos.
E depois há os outros. Os que saíram. Os que foram, viram, regressaram e trouxeram nas malas o mesmo olhar estreito com que partiram. Os que viajaram com o medo enfiado nos bolsos, com a terra agarrada aos sapatos como lodo, com a cabeça fechada numa caixa de sapatos onde o mundo é sempre um eco do que deixaram.
Fizeram fotografias, tiraram “selfies” com monumentos que não entenderam, comeram em restaurantes estrangeiros pedindo pratos que não souberam pronunciar, falaram alto em português nos metros estrangeiros para se saber que estavam ali, estrangeiros em todo o lado, até em si mesmos.
Voltaram com sotaque forçado e histórias de aeroportos, como se atravessar fronteiras fosse argumento bastante para adquirir pensamento.
Mas não é.
Não basta sair para ver.
Não basta ir para perceber.
É preciso descalçar-se das certezas, abrir espaço ao incómodo, deixar cair a ilha de dentro. Esses, os que regressam iguais, são ainda mais perigosos. Porque acham que sabem. Porque acreditam que uma viagem de avião é suficiente para mudar de mundo. Porque julgam que acumular deslocações é acumular sabedoria. E então escrevem, opinam, citam nomes estrangeiros como se isso fosse, por si só, marca de autoridade. Mas continuam a olhar o mundo como se fosse uma versão aumentada da sua rua, continuam a pensar com a lógica do compadrio, com o léxico da cunha, com a ética da conivência.
Não aprenderam nada. Ou pior: aprenderam tudo errado.
E são esses que fazem discursos sobre abertura, sobre cosmopolitismo, sobre futuro, com a alma ainda de joelhos diante do altar do caciquismo.
Talvez um dia, quem sabe, a ilha acorde. Não como quem desperta do sono leve, mas como quem rasga um silêncio espesso com um grito seco, com a consciência súbita de que viveu anos enjaulada num aquário a que chamava oceano, convencida de que as pedras do fundo eram continentes e os peixes figuras tutelares.
Talvez um dia alguém olhe para o céu e veja que o azul não é exclusivo, que o horizonte não é um fim, mas um convite, que o mar que nos cerca não é muro, é estrada líquida, é espelho de todas as outras margens por onde também se chega a casa.
Talvez nesse dia se quebrem os espelhos onde nos fomos revendo com vaidade e se abram janelas por onde entre finalmente o vento das perguntas certas, o ar limpo das ideias que ainda não nasceram, a música das línguas que ainda não ousámos escutar.
E nesse instante, fugaz, mas definitivo, a Madeira deixará de ser prisão com vista. Não porque mude de sítio, mas porque muda de dentro. Porque o medo cede lugar à dúvida. Porque a nostalgia dá lugar à vontade. Porque, por fim, com os olhos lavados de distância, reconhecerá o elefante inteiro. E deixará de lhe chamar parede. E chamá-lo-á, talvez, mundo.