Mal sabia Roberto Passos que, ao fazer o check-in no voo da TAP 1698 para Lisboa, de onde seguiria para Casablanca, Marrocos, o dia que começara de forma tão comum acabaria por transformar-se num episódio digno de um relato de sobrevivência urbana. Viajante frequente, habituado aos atrasos, trocas de portão, alterações de última hora e contratempos vários, jamais imaginou que enfrentaria uma falha total de energia na capital do seu próprio país, com todos os efeitos colaterais que um apagão energético pode provocar numa sociedade altamente dependente da tecnologia.
A viagem começou cedo, com o voo do Funchal para Lisboa às 5 da manhã. Já no Aeroporto da Madeira, fez o check-in da sua bagagem directamente para o destino final: Casablanca. A escala em Lisboa parecia apenas uma pausa logística antes de retomar o circuito de reuniões. Com tempo até ao próximo voo, resolveu ir ao café com um amigo na cidade. Tudo indicava que seria apenas mais uma viagem de trabalho, como tantas outras.
Foi durante esse café, já passava das 11h30, que começou a notar movimentações estranhas. Estava numa pastelaria quando se apercebeu de um certo murmúrio entre os clientes. Rapidamente percebeu que havia algo fora do normal: as luzes piscaram, os terminais deixaram de funcionar, os pagamentos com cartão ficaram impossíveis. Pagou a despesa em dinheiro e, com alguma urgência, dirigiu-se para o aeroporto, desconfiando de que algo mais grave estaria a acontecer.
O que encontrou ao chegar à zona do aeroporto deixou-o em estado de choque. Uma multidão acumulava-se à entrada do terminal. As portas estavam fechadas. Ninguém entrava. No chão, idosos, grávidas e crianças procuravam algum conforto em vão. O calor tornava o ambiente ainda mais opressivo. Desorientação, ausência total de informação útil. Era o caos.
“Já não me deixaram entrar e havia grávidas, crianças e idosos no chão, sem condições algumas, ainda por cima com calor. Um cenário surreal”, recorda. O voo para Marrocos já estava cancelado, como muitos outros. Não havia qualquer explicação oficial, muito menos alternativa imediata. Só restava improvisar.
Roberto decidiu caminhar até à rotunda do Relógio, seguindo o fluxo de centenas de passageiros que, tal como ele, procuravam táxis, boleias, qualquer solução de fuga. A sorte acabou por sorrir-lhe quando encontrou um motorista da Uber que ainda aceitava passageiros, graças ao facto de ainda ter dinheiro físico consigo. Pediu uma viagem até casa, em Benfica, onde felizmente tem um apartamento.
Mas o regresso a casa não foi menos desafiante. O prédio estava totalmente às escuras. Com o telemóvel a menos de metade da bateria, teve de poupar energia para o que viesse a seguir. Subiu 12 andares pelas escadas, iluminando o caminho com a lanterna do telemóvel. Ao entrar, procurou velas, garantiu que tinha água e começou a pensar no essencial: comida.
Lá fora, o comércio já estava em ruptura. Alguns estabelecimentos abriram portas, mas tinham pouca oferta. O contacto com vizinhos revelou-lhe uma pista: havia quem tivesse conseguido fazer compras no supermercado Continente. Seguiu o mesmo caminho e, ao chegar, encontrou centenas de pessoas dentro da loja. Esperou 40 minutos para pagar 30 euros de compras, num cenário quase apocalíptico. Gente a correr de secção em secção, prateleiras vazias, um frenesim inesperado para uma segunda-feira à tarde.
A par do desconforto e da incerteza, houve também uma espécie de comunhão espontânea. As ruas encheram-se de famílias, vizinhos, cães, crianças a brincar. Sem rede, sem internet, sem distrações digitais, restava o convívio à moda antiga. Quando, pelas 21 horas, a electricidade regressou, ouviu-se um coro espontâneo de aplausos e gritos de alívio. Um momento de alegria partilhada depois de tantas horas de desorientação.
Numa leitura pessoal da experiência, Roberto faz uma comparação reveladora: “Senti-me em África. O que ontem me preocupava era se tinha electricidade e água. África preparou-me para o que vivi ontem. E essa experiência fez toda a diferença.” Ao longo da sua carreira, habituou-se a adaptar-se a condições adversas, em países com infra-estruturas frágeis, comunicações intermitentes e sistemas de emergência limitados. Mas ver Lisboa colapsar daquela forma, mesmo que por algumas horas, deixou-lhe marcas.
Agora, tenta resolver o próximo passo: retomar o seu plano de viagem. Precisa de chegar a Casablanca para cumprir reuniões de trabalho inadiáveis. De lá segue para o Cairo, depois para Varsóvia e, por fim, regressa à Madeira, onde esta jornada começou. Mas há ainda um ponto por resolver: a sua mala, entregue à TAP no Funchal, permanece num limbo logístico. “Ninguém sabe ao certo onde está, e recuperá-la é agora mais um obstáculo neste caminho.”
Com uma vida profissional que o leva a viajar regularmente por África, Europa e América Latina, Roberto Passos diz que já passou por muitas situações inesperadas. Mas nenhuma como esta. “Foi como recuar no tempo. Uma experiência absolutamente marcante. Trouxe à superfície fragilidades que esquecemos que temos. Somos altamente dependentes da electricidade, da rede, do conforto. E quando tudo falha, resta-nos a capacidade de nos adaptarmos. Felizmente, tive essa margem. Mas vi muita gente sem essa sorte.”
Uma viagem que começou como tantas outras, mas que ficará certamente registada como um episódio invulgar numa longa lista de histórias que o mundo das deslocações profissionais proporciona. Desta vez, no coração de Lisboa, sem electricidade, sem acesso e sem plano B.