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Análise

Mesmo que as mãos fiquem sujas

Talvez o Papa que se segue possa colher parte do que Francisco semeou em nome do povo

Muito daquilo que o Papa Francisco semeou em 12 de anos de Pontificado não conseguiu colher. Mas germina já em cada gesto redentor daqueles que se assumem tocados pelo “homem bom”, pelo pastor exímio na proximidade, mesmo que vindo do fim do mundo, ou pelo farol de esperança para os que sobrevivem nas margens da sociedade. Para a história colectiva da Igreja pecadora e do Mundo errante ficam boas memórias, momentos de humor ou de amor e ensinamentos diversos, mesmo que por vezes excessivamente reduzidos a uma dimensão pop. 1. Escapou a muito analista o que o cantor Tiago Bettencourt humildemente captou, confidenciando por estes dias ter sido uma “sorte” ser contemporâneo do iluminado Francisco, de quem tira a carga vital que julga ser seu dever carregar com responsabilidade, orgulho, alegria e inteligência.

E como “tudo o que se perde ganha asas”, coube-lhe antecipar o guião eterno da voz corajosa, partilhando-a em 2023 com os jovens que tornaram Lisboa o palco de “todos”, a palavra que ousou perpetuar na sua guitarra. Por ser simultaneamente empática e revolucionária. A ‘Viagem’ é inequívoca para os que acreditam e, nesta passagem, merecedora de ser entoada na última homenagem, há uma certeza: “Voltarás um dia também, como todos nós que um dia vamos, procurando luzes que nos faltam, encontrando os passos onde andamos. Tens essa coragem, eu sei, de largar as coisas mais amadas, descobrir o sítio onde se lavam, dores que se querem descansadas”.

2. Da arrojada missão papal sobram múltiplas directrizes que deixam marcas. Sobretudo quando exortou os cristãos para que não tenham medo de sujar as mãos na vida política, entendendo-a como “uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum”. E porque é aí que se decide grande parte do futuro dos povos, desafiou os acomodados a ganhar o gosto por este acto de amor social e serviço desinteressado em favor da justiça e da paz, e que por sinal, está carente de fervorosos honestos e idealistas na era dos cínicos, curiosos ou indiferentes.

3. Francisco apenas lançou sementes de mudança que crescem devagar. Bem sabia que por via das resistências da Cúria ou pelas triviais dificuldades do ‘aggiornamento’, existiriam sempre desfasamentos entre o que idealizou e o que realmente cumpriu. Mas para que não se perca o seu melhor legado - a misericórdia, a atenção aos pobres, a defesa do meio ambiente e o diálogo com o mundo moderno - o próximo Papa terá que ser mais do que uma mera escolha que satisfaça clubismos, feitos de moderados, conservadores ou liberais. Espera-se um eleito fiel ao impulso pastoral do antecessor e que mantenha a visão de uma Igreja “hospital de campanha”, próxima das feridas abertas, com empenho redobrado em completar as reformas entretanto iniciadas numa estrutura que continua pesada e por vezes disfuncional. Alguém que combine a ternura dos gestos com a habilidade capaz de construir consensos e resolver conflitos. Um líder a seguir, se for tão unificador como inspirador.