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Morreu o Carlos Matos Gomes

Coronel de Cavalaria reformado, tinha 78 anos.

Entrámos na Academia Militar, em Outubro de 1963, quase no mesmo dia.

Sofremos as mesmas praxes, estudámos matemática, física, geometria e quejandas artes, teorias e práticas da vida militar e, lendo Jean Larteguy, o padre Resina, capitão, capelão e professor de deontologia militar, confrontava-nos com os preceitos éticos da vida que abraçáramos.

As suas lições começaram a desenhar a nossa vida, pois a Cruzada Nacional que nos tinham servido na Academia, logo se revelou, mal pusemos os pés em África, numa sequela lusitana da guerra colonial que Larteguy relatara.

Foi ferido na guerra e veio a revelar-se um militar muito corajoso, inteligente e culto, sendo condecorado com as mais altas honras militares por feitos em combate em Moçambique, Angola e Guiné.

Reencontrámo-nos em 1973, conspirando para deitar abaixo o regime e aqui se lançou na aventura da revolução que serviu da mesma forma como sempre viveu.

Com coragem, frontalidade, e respeito pelo seu povo que amou e serviu como poucos.

Claramente que pagou o preço da sua coerência e acabou a carreira em coronel.

Com uma informação enciclopédica, e um gosto pelo romance e pela história, publicou dezenas de livros com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz, na sequência de “Soldadó”, um magnífico conto, retrato do atraso atávico de Portugal, na aventura de um pobre soldado analfabeto e simplório, mobilizado para um guerra que não entende, mas onde encontra o refúgio da sua pobre vida.

No “Nó Cego” seu livro de estreia, o melhor romance que ainda hoje revela, por dentro, a Guerra Colonial, descreve com lucidez e tacto, dramas e cretinices, enganos e bravatas, intrepidez e medos, sacrifícios e generosidades, desesperanças e saudades, amores e ódios. Numa narrativa expressiva e documentada, dá nota da incapacidade de se poder ganhar uma guerra para a qual não havia meios nem razões para vencer.

E, depois com “Geração D”, tira, em nome próprio, o retrato ao tempo e à gente que tirou Portugal da apagada e vil tristeza do salazarismo, sem que tivesse conseguido varrê-la de vez, dos hábitos e da vida dos portugueses.

Homem de palavra e honra, lutou até ao fim, nos diversos palcos onde interveio, por um Portugal decente, justo e fraterno sem se esquecer dos desmandos na política internacional. E a sua palavra informada, em artigos e blogs, levantou-se sempre contra políticas belicistas ao serviço de interesses turvos e inconfessáveis; contra o sacrifício insano de centenas de milhares de vítimas da derrota que o Ocidente impôs à Ucrânia; na denúncia do holocausto reinventado pelo Estado de Israel, na Palestina, num expoente de amnésia e vilania; ou contra as torpezas de Trump e de todos os que, como ele, no mundo inteiro chafurdam na negação de passados recentes.

Quer se tratasse de uma injustiça, de uma imbecilidade ou de uma mentira devidas a falta de conhecimento ou a ganância desenfreada, sempre a voz de Carlos Matos Gomes, se levantou para zurzir, com argumentos certificáveis, os vendilhões do templo que as propagandeavam.

Sem que a sua voz se levantasse e a irritação se impusesse, era temido pela sua inteligência fria e vasta cultura e respeitado pela sua coerência tranquila e urbanidade respeitadora.

Portugal perdeu hoje um herói sereno e sábio, que morreu a ouvir canções de Abril junto dos seus.

Eu autorizo-me a lembrá-lo e chamar a atenção para a sua personalidade ímpar.

Que os mais novos leiam os seus livros, e colham o seu exemplo.

Aos que sobramos, resta-nos não esquecer.