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Fama

A cidade de Elvas tem por armas um homem a cavalo com uma lança na mão direita, da qual pende uma bandeira com as quinas de Portugal. Diz a lenda que na sua origem está o feito do cavaleiro Gil Fernandes, que havia apostado ir a Badajoz e de lá trazer a bandeira real. Disse e cumpriu. Mas, no regresso, os que defendiam Elvas, vendo uma multidão de cavaleiros castelhanos que vinham atrás dele, não lhe abriram as portas, conforme o combinado.

Então Gil Fernandes lançou a bandeira por cima da muralha, bradando: “Morra o homem e fique a fama!”. E foi, logo ali, trucidado pelos perseguidores.

A frase ficou, usando-se mesmo em conjunturas menos violentas e não tão dramáticas. Mas não esqueçamos que não só a coragem física conta: a coragem moral não lhe fica atrás.

Na minha memória ficou um filme célebre e premiado, Fanfan la Tulipe, de 1952, protagonizado por Gérard Philipe (Fanfan) e Gina Lollobrigida (Adeline). Num das cenas, Adeline é assediada pelo rei Luís XV e defende-se... à bofetada. Caindo em si, foge para junto de Madame de Pompadour, a quem conta a estória. E esta, revirando os olhos, só diz: “mon rêve!” (o meu sonho!). E protege-a.

Pois os nossos sonhos são muitas vezes esses: dar a devida resposta a quem merece. O que nem sempre é fácil, sendo normalmente mais um problema de coragem moral do que coragem física.

As imagens e os ditos que ficam da reunião entre Trump e Vance, por um lado, e Zelensky, por outro, perante as câmaras, devem ficar como um marco na História das Relações Internacionais.

O tom de desprezo com que Trump tratou um Chefe de Estado, permitindo-se até achincalhar o modo como estava vestido, levou a uma resposta à letra do humilhado Zelensky. Naturalmente, o Vice-Presidente Vance forçou a nota do seu chefe, passando do escárnio à ameaça.

Resultado: Zelensky foi despedido, sem protocolo, da Casa Branca, e o episódio deu início a um oceano de análises e comentários sobre o caso.

Uma das coisas que tem sobressaído da crise da Ucrânia é a reafirmação do conceito de soberania limitada. Nem é novo: a Polónia foi partilhada três vezes; os Sudetas resolvidos entre Alemães, Ingleses e Franceses, sem consultar os checos; e agora a Ucrânia entre americanos e russos, brilhando os ucranianos pela ausência.

Portanto, ainda que as coisas tivessem decorrido com urbanidade, o resultado não teria sido muito diferente. Mas todos julgávamos que os tempos da “diplomacia de canhoneira” (de que é exemplo o Ultimatum inglês de 1890) estavam ultrapassados. Mas ei-los de volta, em tempo real, ao vivo e a cores.

Uma certa contenção e diálogo civilizado eram apanágios das relações internacionais. Mas agora as Altas Partes Contratantes passaram a ser aqueles desqualificados (ou pior), e países soberanos passaram a ser apelidados de shithole countries.

De modo que, ainda que as negociações não cheguem a bom porto, Zelensky não tem de se recriminar: elas estavam inquinadas à partida, como se tem visto, e, se o verniz estalou, não terá influência no resultado final.

Mas Volodomir Oleksandrovich Zelensky pode dizer, como o cavaleiro Gil Fernandes de Elvas: morra o Homem e fique a fama!