Venceu a pessonha
1. Venceu a Pessonha
Venceu o Miguel, claro que venceu, com aquele sorriso de retrato de primeira comunhão e os olhos pequenos rasgados de quem aprendeu desde cedo que a sobrevivência é uma arte como outra qualquer, como a jardinagem de rosas ou o contrabando de esperanças, venceu o Miguel e eu vi-o na televisão com a gravata torta e os punhos da camisa a escaparem do casaco, a mão direita a tocar o microfone como quem segura um ramo de flores de plástico, venceu o Miguel e ninguém pareceu surpreendido, nem ele, que já não vence, simplesmente continua.
A Madeira votou, dizem, como se a Madeira fosse uma senhora respeitável de cabelo armado, colar de pérolas falsas e um neto na Suíça, votou, votou-se, votaram-se todos uns aos outros e no fim ganharam os mesmos, que são sempre os mesmos, mesmo quando mudam de nome ou de perfume ou de lugar na fotografia. Votaram como quem vai ao médico só para renovar a receita, como quem diz “doutor, é só para mais uns comprimidos, que eu cá já sei o que tenho”.
E o que têm é pessonha. Uma pessonha morna, envolvente, que se entranha como o cheiro a fritos nas casas onde se vive com a avó e um cão velho, uma pessonha feita de favores com memória, de almoços pagos a prestações e de promessas em voz baixa, de mão no ombro e uma palmadinha nas costas, como quem diz aguenta mais um bocadinho, que a obra vem aí. Venceu a pessonha com a naturalidade de quem atravessa a rua fora da passadeira, de quem pede fiado no café do costume, de quem já nem estranha o sabor a mofo na água da torneira.
O Miguel, que já não é um político, é um hábito, um vício, uma constância, o Miguel a quem ninguém acredita mas em quem todos confiam, o Miguel que governa como quem arruma gavetas, com pressa, sem paciência, empurrando para o fundo o que incomoda, venceu porque sim, porque estava lá, porque ninguém teve coragem de o tirar, porque tirar o Miguel era como mudar os móveis da sala: ninguém sabe onde pôr o sofá e no fim acaba tudo igual, só mais baralhado.
E os outros? Os que dizem que são oposição? Uns miúdos, uns tios, uns fantasmas, cada um com o seu discurso escrito por um estagiário e o seu medo de levantar muito a voz, não vá o regime ouvir. Falavam de mudança como quem lê uma receita que nunca cozinhou, com aquele entusiasmo triste de quem já sabe que vai perder, que nasceu para perder, que a mãe já lhe dizia “não te metas nisso, rapaz, que vais-te aleijar”. E aleijaram-se, claro, mas só na vaidade.
A pessonha, essa sim, nunca falha. Está nos corredores do poder, nas escadas do parlamento, no hálito e na nódoa da gravata do secretário. Está no café da manhã pago com cartão do governo, na viagem à capital com a comitiva do costume, no telefonema que começa com “olhe, eu conheço alguém que lhe pode resolver isso”.
E o povo? O povo viu, ouviu, sentiu, cheirou, e mesmo assim votou. Porque a alternativa não se apresenta, não se impõe, não se impacienta. Porque a alternativa ainda está a perguntar se pode entrar. Porque o medo é mais confortável do que a esperança. Porque o Miguel é como a chuva: molha, irrita, estraga a roupa, mas no fundo, faz parte da paisagem.
Portanto venceu.
Claro que venceu.
Venceu como se respira.
Sem pensar.
Venceu o Miguel, sim, mas, no fundo, ganharam todos. Ganharam os que ganharam porque ganharam, ganharam os que perderam porque quase, ganharam os que subiram porque fingem que sobem mesmo quando descem, ganharam os que desceram porque juram que foi estratégico, ganharam os que ficaram na mesma porque isso já é qualquer coisa, ganharam os que disseram “mas” porque o “mas” é sempre uma desculpa, ganharam os que disseram “sim” porque o “sim” ainda soa a convicção. Ganharam todos, como sempre, como num daqueles jantares de família em que se grita, se discute, se parte um prato, e no fim há sobremesa para todos. A democracia, tal como a entendemos por cá, é uma ceia de Natal onde o peru já está seco, mas ninguém se atreve a dizer que está incomível - e todos saem da mesa convencidos de que a razão lhes pertence.
Parabéns, Miguel. E parabéns a todos nós, que assistimos de pé, aplaudimos com vergonha, e voltámos para casa a dizer que está tudo mal… mas votámos igual.
2. A Madeira dos submissos
Quando mais desanimado, olho para a Madeira e o que vejo é um grande presépio de miséria disfarçada de postal turístico, onde prolifera um tropicalismo formal em formol, e túneis e rotundas com uma escultura moderna no centro ou então um fontanário, e onde ao mesmo tempo, os olhos das pessoas mantêm aquele brilho de súplica silenciosa que a fome dá a quem não tem coragem de admitir que tem fome. Na Madeira, dizia, não se governa, distribui-se. É uma terra onde se distribui. Alimentos, favores, lugares, promessas. Distribui-se como quem dá alpista a pombos: com a certeza de que voltam. Voltamos todos. Por medo, por hábito, por necessidade, por desespero. Voltamos sempre.
E há os que vivem disso. Da distribuição. Da caridade institucional com nome de programa social e cheiro de coisa antiga, coisa de beata, de misericórdia, mas sem misericórdia nenhuma. Porque quem dá não dá por bondade, dá por cálculo. Porque quem dá não dá para libertar, dá para prender. Cada saco de arroz vem com um voto dentro, e a mão que o estende, estende também um contrato que diz que a tua dignidade agora é propriedade do partido, do governo, da Junta, da Câmara, daquele vereador de voz mansa que te trata por “meu amigo” enquanto assina por baixo a tua resignação.
E depois há os outros, os filhos e netos da mesma máquina, os que o partido meteu ali ou acolá, nos corredores das Câmaras, nos gabinetes dos institutos, nos automóveis que levam os senhores, nos balcões das repartições onde ninguém sorri. Gente que talvez, lá, no fundo, lá muito no fundo, tenha tido sonhos uma vez, tenha querido fazer qualquer coisa com sentido, mas que acabou a viver de um salário dado por um favor e mantido por um silêncio. Não dizem nada, não protestam, não ousam pensar em voz alta. Têm medo. E não é o medo de perder o emprego — é o medo de deixarem de existir.
Depois vêm os empresários, essa classe submissa e cínica, que aprendeu há muito que ser livre dá prejuízo. Que o lucro, se é para aparecer, vem dos contratos com carimbo oficial, das adjudicações com valores redondos, das avenças mensais como quem recebe uma mesada do pai. Falam de mercado, sim, nas conferências, nas entrevistas, nos jantares. Falam de competitividade e inovação, com ar muito sério e até gravata escura, mas que não competem com nada, não inovam coisa nenhuma, vivem da proximidade. O sucesso, para eles, mede-se em metros quadrados de proximidade com o poder.
E tudo isto converge, como um rio sujo e lento, no dia da eleição. Os pobres, os empregados do regime, os empresários do favor, todos juntos numa fila ordenada, a depositar na urna o voto que não é deles, mas sim de quem os possui. Não votam por esperança, não votam por convicção, votam como quem devolve um empréstimo. Como quem paga um imposto por existir. E o poder ganha. Ganha sempre. Mesmo quando cheira a podridão, mesmo quando se ouvem escutas que dariam para trinta demissões no continente, mesmo quando o escândalo é tão evidente que até os cães na rua desconfiam, ganha. Porque quem depende não escolhe, obedece.
E o que sobra disto tudo é o silêncio. Aquele silêncio espesso que se instala depois da digestão do medo. Um silêncio que é mais do que ausência de som: é ausência de futuro. Porque o futuro, na Madeira, não é uma construção, é uma promessa adiada até ao dia em que alguém “trate disso”. As pessoas não acreditam em mudança, acreditam em cunha. Acreditam em quem “tem acesso”. E vivem assim, de cabeça baixa, numa ilha que podia ser extraordinária, mas prefere ser somente funcional.
E isto não é apenas triste, é fatal. Porque enquanto o mérito for um risco, enquanto a autonomia for um perigo, enquanto a crítica for um atentado, não há Madeira possível. Só uma cópia envelhecida de si mesma, governada por fantasmas que se repetem há décadas, com nomes diferentes, mas sempre com a mesma cara de quem nunca precisou de pedir nada porque mandava em tudo.
E o pior de tudo — o mais cruel, o mais insuportável — é que, apesar de tudo, apesar de saberem, apesar de sentirem, continuam a votar neles. Não porque queiram. Porque não sabem outra coisa. Porque esqueceram que havia outro caminho.
E esse esquecimento é a verdadeira derrota.