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Crónicas

O bom, o mau e a lama

Acometido da habitual amnésia política, agravada por episódios súbitos de síncope ideológica, o CDS continua impune e alegremente em campanha. Da exigência de mais investimento na saúde à criação de centros de tratamento animal, passando por uma miríade de planos de incentivos fiscais, de apoio ao trabalho e à habitação, há, na campanha do CDS uma prenda para o sapatinho de cada madeirense. O atrevimento é tanto, que quase nos esquecemos por onde andou o CDS nos últimos seis anos da governação regional.

O bom: Os Napa

E vão quatro. Sérgio Borges, Vânia Fernandes, Elisa Silva e, agora, os NAPA. A vitória de artistas madeirenses no Festival da Canção continua a surpreender tanto em 2025 como surpreendeu em 1970. De tal forma que há, no rescaldo dos sucessos insulares, uma tentação bacoca de reduzi-los a sobressaltos regionais e, em consequência, a desqualificá-los como criações artísticas. À vista desarmada, a canção dos NAPA parece feita à medida da gaveta onde a ignorante sobranceria continental a quer arrumar. É feita por madeirenses, sobre a Madeira e a propósito de um sentimento insular. Mas os NAPA cantaram muito mais do que isso. Cantaram para os que saíram do seu país em busca do que cá não encontraram, para os que carregam um lugar em si, mesmo quando já não o pisam, para quem se tenta encontrar, num sítio onde ninguém os reconhece. Foi nessa encruzilhada de saudades que a canção encontrou o seu lugar. E talvez esse sentimento seja maior nas gerações de ilhéus que, longe de casa, aterraram no seu país e ali se sentiram estrangeiros. Mas quando os NAPA cantaram o seu regresso a casa, referiam-se a não só a um lugar mas a um sentimento de pertença que ultrapassa a insularidade. É por isso que o refrão do “Deslocado” cresceu de um sussurro partilhado entre madeirenses para uma canção entoada por quem nunca veio à Madeira. Essa é a maior vitória dos NAPA: mais do que o êxito de uma ilha, o triunfo de um sentimento que não conhece geografia.

O mau: A demissão do Governo

Dez dias. Ao fim de 4 horas de discussão de uma moção de confiança e de várias semanas de promessas de uma comissão de inquérito, foram dez dias que separaram o PSD (e a queda do Governo) do PS. O PS queria uma comissão de inquérito de 90 dias, o PSD ficou-se pelos 80. Mas comecemos pelo início. Pela desconcertante inabilidade de Montenegro em lidar, e acabar, de uma vez por todas com o ruído em torno da Spinumviva. Fica a sensação de que o primeiro-ministro confiou que o turbilhão mediático lhe resolveria o problema e que, a esta polémica, seguir-se-ia outra, e assim sucessivamente, até que já ninguém se lembraria da suspeita original. Depois, entre a espada de uma comissão de inquérito e a parede de umas eleições antecipadas, Montenegro arriscou uma moção de confiança. Só o pode ter feito por uma de duas razões. Fê-lo porque achava que teria vantagem sobre o PS nas próximas eleições e, por isso, quis precipitá-las com a expectável queda do Governo. Ou, em alternativa, quis usar a moção de confiança como moeda de troca pela comissão de inquérito. Só Montenegro saberá porque pediu a confiança a um parlamento que já tinha anunciado que não a daria, mas a inenarrável negociação entre PSD e PS dos termos e prazos em que ocorreria o inquérito parlamentar é um indício claro da resposta. E se não fosse suficientemente grave que o Governo quisesse condicionar a função fiscalizadora do parlamento, ameaçando com a sua demissão, fica a sensação de que Montenegro quer colocar a sua condição pessoal e o seu carácter a votos. Não sei se terá sucesso, mas abre um precedente preocupante para o nosso regime democrático.

A lama: O debate político

Há duas formas de olhar para o que fica da crise política que envolve o primeiro-ministro. Uma é o aumento do nível de exigência para todos os agentes políticos e a lembrança de que os titulares de cargos públicos estão sujeitos a um dever acrescido de transparência. Outra, mais pessimista, é que a política está a transformar-se num lugar insuportável, onde se confunde escrutínio público com a devassa ilimitada da vida privada. A questão não é apenas a aceitação da intrusão sem limites na esfera pessoal dos políticos, mas a consequência prática dessa bitola impossível. A partir de agora, com a cumplicidade de PS e PSD, a política tende a transformar-se num ofício reservado aos que nunca fizeram mais nada na vida e aos que se propõem a fazer da política profissão. Só esse estado de necessidade pessoal, admite a sujeição a um processo que tem pouco de transparência e cada vez mais de voyeurismo. E se são as condições pessoais, e não as políticas, que são avaliadas, então é natural que o debate político se faça no lamaçal dos argumentos e ataques pessoais. O resultado é que caminhamos para umas eleições que definirão o futuro, mas onde só se falará de passado e onde apenas governará quem não o tiver – ou quem for suficientemente hábil para o fazer desaparecer.