Dar e tirar
Segundo um velho dito madeirense, muito usado na escola primária (no meu tempo, pelo menos), “quem dá e tira nasce-lhe uma tira”. Não ficava estabelecido que espécie de tira, nem onde nascia, mas tinha decerto uma conotação muito negativa, pois era o argumento supremo quando se pretendia fazer valer um direito, posto em causa por gente de memória curta, palavra pouco fiável e moral elástica.
Passando do microcosmo da escola para a vastidão do Mundo, assistimos muitas vezes às queixas contra quem altera as regras a meio do jogo. Quase sempre os mais fracos, esquecidos do velho aforismo “a rico não devas, e a pobre não prometas”, que tentam lembrar ao mais forte os termos das suas promessas.
Os argumentos para a recusa são muitos, desde o simples e rude “não me lembro” a complicadas demandas jurídicas, nacionais ou internacionais.
Um bom exemplo é o caso do ouro do Banco de Espanha, transferido de Madrid para Moscovo, no final da Guerra Civil (1939). Tratava-se de garantir que as reservas do Banco, que valeriam hoje qualquer coisa como 8.200 milhões de euros, não caíssem nas mãos do governo nacionalista. Finda a guerra, em vão pediu o novo, reconhecido e legítimo Governo Espanhol a devolução do ouro: a resposta foi que essas reservas eram para pagar os fornecimento de material de guerra e outras ajudas à República de Espanha - e nem assim chegavam.
Escusado foi lembrar que se tratava de uma ajuda, e não de uma compra, ou seja, algo que fora dado. Mas o governo soviético não teve medo que lhe nascesse uma tira, e lá ficaram os milhões arrecadados na outra ponta da Europa, até hoje.
Este naco de História tem um certo sabor quando se assiste às discussões entre Donald Trump e Volodymyr Zelenskyy sobre os direitos (?) dos americanos sobre os minérios raros da Ucrânia, como forma de pagamento dos fornecimentos de material de guerra, que afinal, não eram uma ajuda, mas uma venda (como a dos soviéticos à Espanha republicana), embora o putativo comprador não soubesse.
De qualquer forma, fica o sentimento de que a apregoada doação, feita pelo governo anterior (como pelos países da NATO e outros) ter sido agora revertida em venda pelo actual governo constitui matéria para que seja atribuída uma tira.
Que se espera que fique apensa ao casaco do Presidente, ou às suas calças de golf. Não estamos a ver a tira pregada à “stars and stripes”, a modo do rabo de uma joeira.
A menos que o paralelismo seja outro.
Na sequência da I Guerra Mundial, a França ocupou em 1923, na Alemanha, a área industrial de Ruhr, como forma de garantir o pagamento das reparações de guerra, devidas segundo os termos do Tratado de Versalhes.
Será que Trump, que já afirmou que Zelenskyy é culpado pela actual guerra, encara o confisco das terras raras como uma reparação de guerra?
Assim sendo, nada deu, e portanto não lhe nascerá uma tira.