Meritocracia e Poder
A nova expressão do poder, através do conceito de meritocracia, consiste basicamente nisto: o mercado de trabalho distingue os conhecimentos que temos e, a partir daí, os bens que podemos adquirir. A sua legitimação é conseguida através da distribuição social da ideologia. Tudo parece reduzir-se a uma questão de esforço e oportunidade. A meritocracia é a grande desilusão de uma promessa neoliberal que alimenta a desigualdade. Como nos diz Jo Littler, (2018) “a desigualdade é a prescrição da meritocracia, do capitalismo e do nacionalismo”. A ideia de uma sociedade meritocrática assenta na competição que produz precariedade ou, nas palavras de Hannah Arendt, a “meritocracia contradiz o princípio da igualdade tanto como qualquer outra oligarquia”.
Longe de quebrar as hierarquias de privilégio, a meritocracia serviu para fortalecer o individualismo das Nações, isolou os homens e criou novas segregações. A manipulação pela ideia de mérito agravou as distâncias entre a vida e a carreira, entre o eu e o outro, entre o que sou e o que deixei de ser. Em última análise, tornou-nos pessoas piores. Nada tenho contra o mérito. Mas temos o dever que questionar se quando duas pessoas saem de pontos de partida diferentes é razoável avaliar o processo de forma idêntica para o mesmo produto final.
No caso da educação, há uma clara relação entre a escolarização e a manutenção da desigualdade. Temos uma educação que assenta no seu produto e não no processo. Neste sentido, os pontos de partida são diferentes, mas o ponto de chegada, como já referi, pretende-se que seja o mesmo.
Isso também serve às questões de género. Quando ouço que a igualdade será alcançada pelo mérito, penso na ingenuidade desta visão do mundo. Vamos então falar de mérito? Alguém considera que as mulheres não se esforçaram o suficiente? Perguntem, ainda, na nossa terra, se duas mulheres por dia a sofrerem de violência tem alguma coisa a ver com mérito?
Isto leva-me à discussão sobre o que deve ou não ser a educação. Isto é, à ideia da construção do conhecimento e a sua transposição para o currículo formal. Que papel têm os estudantes na construção dos sistemas educativos? São a eles destinados, mas também são eles os menos interessados na participação desta construção. Por outro lado, que processo de dar à luz às ideias usam os Mestres para libertar os seus estudantes da ignorância? Este processo exige disponibilidade e nós deixamos de ter essa disponibilidade. Porquê? Porque nós, sistematicamente, matamos o tempo que temos livre. Mas queremos mais tempo. Queremos mais tempo para o matar.
O que se tem feito em nome de uma educação meritocrática é garantir mais e muita produtividade que nem sabemos bem para que serve. Já não refletimos, nem discutimos entre nós sobre a análise dos processos de formação. Mais não somos do que instrumentos de reprodução social, com a meritocracia como horizonte.
Vivemos para a Grande Fábrica. Entramos ao som do apito da fábrica e seguem as crianças, em fila, a entrar na escola. Que genialidade organizativa, admitamos. Há mais de 200 anos que fizemos isto. Foi de um engenho único que se fez, no pior sentido que a expressão tem. A preocupação da escola fabril venceu o pensamento filosófico e a formação integral dos jovens. Hoje, não importa o que se é, mas o que se tem. Não importa o mérito do processo, mas o posto de chegada. Há maior indigência que esta?