Natal continua a ser intervalo
Encenação anual de virtudes devia ser exercício contínuo de coerência
Muitos insistem em fazer da quadra natalícia, que ainda dura, um tempo de excepção, uma espécie de parêntesis moral no calendário, em que entre tradições, percepções e convicções alguns juram solenemente que tudo farão para ser melhores, o que na prática devia traduzir-se em comportamentos mais atentos, em gestos mais humanos e em atitudes que deviam brotar mais do coração e menos dos bolsos. Mas ano após ano, aquilo que verdadeiramente muda são os números decorrentes do consumismo, os mesmos que explicam a fartura e a miséria, pois os gestos generosos e de misericórdia infinita nem sempre contam para a equação festiva. Ou por não serem facilmente quantificáveis, ou por serem cada vez mais raros, ou por não contarem para as estatísticas da sociedade ávida de sucesso. Prometemos simplicidade, mas produzimos lixo em excesso, montanhas de embalagens, restos de plástico e até papel brilhante destinado a durar minutos, numa festa que devia ser dedicada ao essencial. Falamos em cuidar do futuro, mas deixamos para trás um rasto que o tempo não apaga com a mesma facilidade que dá descanso às luzes que iluminam as ruas.
Os gastos fúteis continuam a ocupar demasiado espaço na bolha das aparências em forma de mesas sobrecarregadas ou de prendas em competição silenciosa. Tudo envolto numa estética de abundância que tenta mascarar realidades, construir narrativas, atenuar inseguranças e medir afectos em volume e preço. Confunde-se celebração com excesso, como se a alegria e a felicidade precisassem de uma qualquer prova material inequívoca, mesmo que efémera.
Trocam-se votos de “festas felizes” com a ligeireza de um reflexo condicionado. Dizem-se palavras aparentemente sentidas, mas sem compromisso real. Cumprimentos que soam bem, mas raramente se traduzem em atitudes coerentes ao longo do ano ou de uma vida. A cordialidade sazonal, quando não é acompanhada de continuidade, arrisca-se a ser transformada em hipocrisia socialmente aceite.
Até há tréguas tácitas. Silenciam-se conflitos, suspendem-se rancores, acomodam-se os ódios e evitam-se os confrontos à mesa. Mas a paz que é gerada ao abrigo das conveniências dura pouco. Passa o Natal e regressam as mesmas fracturas, as mesmas injustiças e as mesmas indiferenças. Ou seja, a quadra revela-se menos propícia à reconciliação desejada com aquilo que é diferenciador e mais um adiamento inexplicável e impensável do que tem de ser feito.
As prendas continuam estranhamente a ser embrulhadas. Não apenas em papel colorido, mas em expectativas, obrigações e consumos automáticos. Oferece-se muitas vezes para cumprir um ritual e não para responder a uma necessidade, para fazer a vez e não tanto para implementar gestos redentores duradouros. Dá-se porque “fica bem” sem cuidado para que tudo faça sentido.
Enquanto o Natal for encarado como um intervalo, não será um elementar ponto de partida. E enquanto o entendermos como uma encenação anual de virtudes, e não como um exercício contínuo de coerência, continuará a não mudar aquilo que é urgente.
O tempo passa veloz e a cada um cabe varrer as contradições que, teimosamente, sobram da ‘festa’.