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Crónicas

Aprender a andar no escuro

O sofrimento é vivido de modo diferente quando é acompanhado com amor e agrava-se quando é abandonado à solidão

“Para a maioria das mulheres é fácil, são elegantes, bonitas, têm o dom da palavra, param o mundo só com a presença, mas eu, não consigo emagrecer, sinto-me mal e os exames não encontram nada, estou com 40 anos, sem marido e não fui mãe!” As vezes que já escutei isto...

A comparação incessante, alimentada por uma sociedade que idolatra estatísticas enviesadas e padrões artificiais, transforma diferenças humanas em falhas individuais. O “normal” torna-se tirania. A vulnerabilidade transforma-se em vergonha e amplifica-a num mundo que vive obcecado pela imagem, pelos resultados e pela ilusão de vidas perfeitas.

As redes sociais, com o seu desfile permanente de conquistas instantâneas e felicidade estrondosa, corroem a perceção de humanidade comum. O sofrimento infiltra-se nas margens silenciosas do que supostamente “não deveria existir”.

Quem sofre sente-se excluído, como se tivesse falhado numa competição. De repente, parece que se aprisionaram enigmaticamente todas as nossas possibilidades e colocamos tudo em dúvida. Esquecemo-nos dos recursos que nos habitam e que, com a ajuda certa, nos capacitam a vivenciar a incapacidade, provocada pela dor, com outro ânimo e outro olhar.

É por isso que Aprender a Andar no Escuro, de João Perestrelo, publicado pela Contraponto, é uma raridade que devolve ao sofrimento a dignidade que a cultura moderna lhe roubou. E fá-lo com aquilo que mais falta faz neste debate: ciência séria, conhecimento fidedigno e humanidade.

Perestrelo começa no corpo, esse primeiro mensageiro do que não sabemos ainda nomear. O estômago que se contrai, o maxilar que endurece, o coração que acelera. Antes que a mente compreenda, o corpo fala. E fala porque é construído para identificar ameaças. Só que hoje a ameaça já não vem de predadores, vem de pensamentos, memórias, comparações.

A mente, essa narradora incansável, é capaz de transformar uma sensação neutra num presságio (as tais crenças que são profecias autoproclamadas). E o mais bonito é ver a forma como a ciência valida esta experiência que a neurolinguística descreve há 50 anos: a dor emocional ativa os mesmos circuitos cerebrais da dor física, envolvendo estruturas como a amígdala, o córtex cingulado e o hipocampo.

O sofrimento é biológico, não é imaginação, nem histeria, nem falta de força. É corpo vivo. E a biologia é apenas parte da história. A genética e a epigenética (tão querida da parentalidade generativa) mostram que alguns de nós nascem mais sensíveis à dor emocional ou física.

Mutações em genes que regulam dopamina, inflamação e sistemas opioides podem aumentar a vulnerabilidade à ansiedade, instabilidade emocional ou dor crónica. E experiências adversas na infância; trauma, negligência, perda, alteram a expressão genética, modulam o sistema de stresse e condicionam a resposta emocional na idade adulta. A ciência confirma: não começamos todos no mesmo ponto.

Perestrelo acrescenta ainda uma crítica certeira à “doença do normal”. Quantas vezes ouviu em consulta: “É normal sentir isto?”, “há algo de errado comigo” não nascem da realidade, nascem de uma cultura doente. E se a cultura adoece, as estruturas agravam.

Precariedade laboral, desigualdade económica, pressões estéticas e profissionais inatingíveis, discriminação pela etnia, cor, condição neurológica, física, género… tudo isto é terreno fértil para ansiedade, depressão e desamparo. A dissolução das comunidades e o isolamento crescente agravam a sensação de deriva.

A ciência é clara: Sem pertença, o sofrimento multiplica-se e quando prolongado tem consequências reais no organismo.

A ativação contínua dos mecanismos de stresse, o que a (minha querida) neurociência chama “sobrecarga alostática”, desgasta o sistema, altera hormonas, desequilibra o cérebro. Abre caminho a doenças cardiovasculares, depressão, ansiedade, perturbações metabólicas. Há limites biológicos para aquilo que conseguimos suportar sozinhos. E quando esses limites são ultrapassados, não estamos perante falhas de caráter, mas sim respostas fisiológicas à dor que se tornou insuportável.

Num tempo em que proliferam charlatães modernos, gurus de Instagram, autoproclamados coachs, promessas de abundância instantânea, regressar à ciência é um ato de coragem.

A cultura do “pensa positivo que passa” perpetua a crença perigosa de que o sofrimento é opcional, que se resolve por esforço individual, mindset correto e frases inspiracionais. É crueldade mascarada de ajuda. E é um negócio. O livro de Perestrelo rompe com este ruído. Expõe a relação entre cérebro e emoção com rigor e sem perder humanidade. Explica como a cultura e a religião moldam a nossa dor. Como o corpo é memória e cartografia de traumas antigos. Como a genética e o ambiente dialogam. Como a sociedade produz angústia estrutural. E como, apesar de tudo isto, ainda somos capazes de transmutar sofrimento em sentido, sempre que tenhamos conhecimento, apoio e verdade. A sua proposta não é eliminar a dor. É compreendê-la. Inserir o sofrimento no contexto maior das nossas vidas, não como falha, mas como parte da experiência humana que nos transforma. No fundo é exatamente o que nos diz o mantra da parentalidade generativa: “É interessante! Tenho a certeza que tem sentido! Há aqui algo que quer ser visto, acolhido, transcendido! Bem-vindo!”

Porque sofrer não é incompetência emocional. É biologia, cultura, história pessoal, pertença perdida, corpo cansado, mente em defesa, é humano. E ser humano implica deixar de lado os atalhos, os manuais de autoajuda vazios, as promessas milagrosas. Implica ciência, “viver na aldeia”, coragem para acolher a vulnerabilidade, recuperar a lucidez numa era que nos quer vendáveis, não verdadeiros. Isso e deixarmos de lado o analfabetismo perante as expressões fundamentais da vida.

Sofrer não é falhar. Falhar é fingir que a ciência não importa quando a vida dói. E é por isso que este livro é um farol, não porque ilumina tudo, mas porque nos guia na força da transformação da dor em amor.