A vila já não é nossa
Desde o início dos anos 80 que me movo pelas ruelas, mais ou menos, estreitas da vila da Ponta do Sol.
Dos tempos em que havia um muro largo que separava a “avenida do mar”, como sempre lhe chamei, substituído por bolas com correntes, entretanto reparadas e, em alguns sítios, substituídas.
Dos tempos da Socarma, quando a circulação de Bedfords cinzentos, metia respeito, sobretudo na curva da câmara.
Dos tempos em que fazia das palmas das palmeiras do miradouro Infante D Henrique (frente à câmara) balouço cortante e das tâmaras cruas, petisco forçado.
Dos tempos da praça de táxis no Largo do Pelourinho, cujos taxistas, que agora me criticam por pensar diferente (só alguns), me ajudavam a atravessar a rua, no alto dos meus três anos, em segurança.
Dos tempos mais recentes, do bar da esquina do Duarte e do Nicodemos, da mercearia eclética do Sr Albino e antes, ainda, do restaurante “Ferro de engomar”.
Hoje, o progresso tomou a nossa vila de rompante. A rua de carros, foi tomada por mesas de cafés e restaurantes. O Beco dos Cavaleiros (ruela que dá acesso à garagem do tribunal, pública, de resto) deveria mudar de nome para “Travessa do Povo enganado”, inúmeros são os carros alugados por turistas que por ali se enfiam sem saber do buraco de agulha que é. É vê-los, de janela a manobrar, aflitos, para sair do verdadeiro aperto.
As palmeiras cresceram e nem as tâmaras encruadas se se substituem a uma guloseima, agora tão fácil de encontrar.
As pessoas da vila foram mudando, uns partindo, outros Partindo. O mais recente, o Sr Setim, com um sorriso permanente nos lábios.
Poucos, dos que se fizeram na vila dos anos 80 ou 90 persistem. Vejo-me, já, como uma resistente, do tempo em que a vila era nossa.
Todavia outros vieram, dum quase solitário Sr Dionísio, a quem confiamos a nossa correspondência, quando a porta está fechada, para novos cafés temáticos e bem decorados. Duma solidão rompida pelo ronco dum carro a um broar heterogéneo que faz daquela rua uma verdadeira torre de Babel. Dum bebé a chorar, num linguajar universal, ao gato que se determinou ser “comunitário”. A vila mudou, não cresceu, porque entre paredes de presépio, mas encheu-se.
Ainda assim, parece que insisto ouvir o Sr Silvério a resmungar para que repare se vem carro antes de atravessar a rua. O Sr Rui a contar as moedas do nosso mealheiro e nos deixar escolher uma peça de joalharia para o aniversário da minha mãe e que o meu pai, voluntariamente, ou não, acabará por pagar na quase totalidade. O Dr Canha e o seu humor inteligente e o seu Citroen “boca de sapo” cuja traseira levantava como magia e suspensão a óleo… Do meu pai a descer a escadaria de Santo António para tomar o seu garoto de um trago.
O Sr Santana a dar amiso à carrinha da escola e a D Deolinda a preparar bolos de aniversário em forma de coração com tanta rapidez como a que falava.
A D Violante e a sua fiscalização intransigente ao número de ervilhas nos pratos de almoço, na cantina.
Parece que os vejo, que os oiço, mas é só impressão minha. Já ali não estão, ou eles ou a carrinha, ou os pratos de ervilhas. Não estão, só quando a vila era nossa. E já não é.