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Crónicas

Uma Terra Sem Rumo

1 [Na Madeira há planos para tudo, menos para a própria Madeira]

Tenho ideia de ter visto num filme antigo, numa tarde dessas em que a televisão fica ligada só para fazer companhia ao silêncio, um diálogo qualquer que me ficou a ecoar dentro. Um homem dizia “Temos de seguir o plano.” O outro, com aquele espanto cansado de quem já percebeu que o mundo é um equívoco mal explicado, perguntava “Também há um plano para isto?” E o primeiro respondia, sem pestanejar, “Há um plano para tudo.”

E a frase ficou-me, como ficam certas canções, sem sabermos porquê, nem onde as ouvimos primeiro. Porque sempre que olho à minha volta, aqui, na Madeira, tenho a sensação de que, se há planos, a maioria são mal desenhados e ainda mais mal cumpridos. E começo a desconfiar que o único plano realmente existente é o de continuar sem plano nenhum.

Não é uma questão de azar nem de destino geográfico. É uma espécie de doença crónica, uma incapacidade herdada e cultivada com zelo. O planeamento existe apenas como cerimónia. Fazem-se planos para dizer que se fez um plano, para justificar o salário de quem o redigiu, para fotografar a assinatura e encher o jornal da semana. São textos que ninguém lê, produzidos por gabinetes que se alimentam de jargão e de gráficos, cheios de termos importados (sustentabilidade, coesão, inovação, resiliência, transição, circular, governança, competitividade, eficiência, digitalização, etc.) palavras que, repetidas vezes suficientes, acabam por não querer dizer nada. O plano é o pretexto, não o propósito.

Tudo se reduz a um exercício de aparência. O documento substitui a acção, o anúncio ocupa o lugar da execução. Planos de habitação, de mobilidade, de juventude, de igualdade, de regeneração urbana, de turismo sustentável, de ordenamento do território, de eficiência energética, de economia azul, de transição digital, de valorização do capital humano, de coesão social, de inovação e competitividade, de sustentabilidade ambiental, de desenvolvimento rural, de inclusão social activa, de educação e qualificação, de saúde e bem-estar, de cultura e património, de habitação acessível, de resiliência climática, de transportes inter-ilhas, de economia circular, de governança integrada, de transição energética, de revitalização económica, de apoio ao empreendedorismo, de combate à desertificação demográfica, de integração das comunidades migrantes, de descarbonização portuária, de gestão costeira, de segurança alimentar, de biodiversidade marinha, de capacitação institucional, de digitalização administrativa, de turismo inteligente, de habitação jovem, de reabilitação urbana, de sustentabilidade financeira, de inovação social, de inclusão digital, de acessibilidade territorial, de promoção da economia criativa, de adaptação às alterações climáticas e de mobilidade eléctrica, uma procissão infindável de títulos sem corpo. São maquetas feitas de vento, construídas com os mesmos slogans, as mesmas promessas, os mesmos erros reciclados com capa nova. Publicam-se, exibem-se, esquecem-se. E no fim, ninguém é responsável porque todos participaram na liturgia da boa intenção.

Na prática, a Madeira move-se por impulsos, como um doente que reage à dor, mas não à causa. Quando surge um problema, improvisa-se uma solução, quando essa solução falha, arranja-se outra ainda mais improvisada. Vive-se na cultura do remendo: tapa-se o buraco com fita-cola e um sorriso. Planeamento, aqui, é uma palavra para os discursos, não para o quotidiano. Não há estratégia, há reacção. Não há desígnio, há calendário. Não há direcção, há obras. E todas as obras, claro, são urgentes, necessárias, estruturantes, mesmo quando não servem rigorosamente para nada.

Décadas disto criaram uma geração inteira que confunde acção com progresso. Que acha que governar é pôr as máquinas a trabalhar, mesmo que seja para levantar a estrada que se acabou de fazer. O poder aprendeu que o betão dá votos, que pensar não dá. A inteligência política reduziu-se à engenharia civil: pavimentar, inaugurar, fotografar, repetir. E assim se fez um arquipélago onde o cimento se tornou ideologia. Quando alguém pergunta “há um plano para isto?”, a resposta sincera, se a houvesse, seria: “há, mas é só para fingir.”

A verdade é que na Madeira o improviso foi elevado a sistema. Planeia-se o improviso com rigor, executa-se o caos com método. Cada novo plano é uma encenação: fala-se de futuro com a solenidade de quem recita um salmo, convoca-se a sustentabilidade, a digitalização, a economia azul e verde, e depois tudo se dissolve em nada. O plano é aprovado, anunciado, arquivado. E quando falha, que é quase sempre, a solução é simples: faz-se outro. A sucessão de falhas tornou-se a política oficial.

O mais trágico é que as pessoas já se habituaram a isto. Já não esperam coerência, só querem espectáculo. O cidadão comum não pergunta “qual é o plano?”, pergunta “quando é que começam as obras?”. O planeamento deixou de ser uma ferramenta de governação e passou a ser um acessório de propaganda. E como ninguém mais se dá ao trabalho de exigir sentido, o poder contenta-se em repetir a pantomina. A inércia tornou-se rotina, e a rotina substituiu a ambição.

A culpa, porém, não é apenas de quem governa. Também é de quem aceita, de quem se resigna, de quem acha que “sempre foi assim” e que “não vale a pena”. Essa resignação confortável, essa preguiça cívica, é o terreno onde floresce a mediocridade que é a antecâmara do populismo. O arquipélago, que devia ser um laboratório de autonomia, tornou-se uma vitrina de dependência: dependência política, económica, mental. Não há plano para o futuro porque o futuro, aqui, é sempre uma ameaça.

Talvez por isso aquele diálogo me tenha ficado colado à memória. “Há um plano para tudo”, dizia o homem no ecrã. E eu, cada vez que repenso a frase, não consigo deixar de sorrir com amargura. Porque na Madeira, se há planos, não são para tudo, são para todos menos para a própria Madeira. Há planos para justificar o erro, para adiar a solução, para mascarar o vazio. Há planos para o dia da fotografia, para a manchete do jornal, para o aplauso fácil. Mas não há, nunca houve, um plano que nos levasse de verdade a algum lugar.

E é talvez essa ausência de plano que mais dói, não por falta de capacidade, mas por falta de vontade. Porque o que falta à Madeira não é talento, nem inteligência, nem recursos. É coragem de pensar. Coragem de rasgar o papel e começar do zero. Coragem de dizer, sem medo do ridículo, que planeamento não é fachada, é futuro. E enquanto essa coragem não existir, o arquipélago continuará a girar sobre si mesmo, imóvel e exausto, a fingir que avança, enquanto repete, como no filme, a mesma mentira: há um plano para tudo.

2. O Golfe Antes da Casa
[Para o luxo há milhões e para a vida, promessas por cumprir]

Há quem insista que isto é normalidade. Que um segundo, um terceiro e uma quarto campos de golfe no Porto Santo é progresso, modernidade, visão estratégica. O dinheiro aparece como por feitiço quando o assunto é relva importada e buracos numerados. Há estudos, concursos, fotografias de governantes sorridentes. Mas quando se fala da Unidade de Saúde Local, aquela onde pessoas reais esperam horas com dor e medo, o cofre esvazia-se como se tivesse sido assaltado por fantasmas. É impressionante esta alquimia pública que transforma verbas abundantes em silêncio administrativo sempre que o assunto é vida e não cosmética.

Numa ilha pequena, onde o mar decide o acesso ao hospital central e onde viver já é, por si, um exercício de persistência, a prioridade torna-se um folheto turístico. Enquanto famílias procuram casa, jovens ponderam partir por falta de futuro e idosos vivem num limbo burocrático, a resposta oficial é sempre a mesma: complica-se, adia-se, promete-se. A política age como se construir habitação fosse mais difícil do que projectar uma nave espacial, e como se a realidade concreta fosse obstáculo indesejado a um sonho de postal ilustrado.

A mobilidade é um teatro cansado, onde horários, preços e incerteza governam o quotidiano de quem precisa de se deslocar. Mas o que parece urgente é o fairway perfeito, estudado com a minúcia que nunca se dedica a transportes acessíveis, consultas disponíveis ou habitação digna. O essencial é continuamente empurrado para depois, como se fosse possível construir uma comunidade começando pelos enfeites e esperando que os alicerces brotem sozinhos do basalto.

Tudo isto tem uma raiz: preferem mostrar a resolver. É mais simples inaugurar relva do que encarar desigualdade, isolamento, falta de oportunidades e ausência de planeamento real. A ilusão dá votos e fotografias felizes; responsabilidade não dá brilho. Só que uma ilha não se sustenta com vitrinas. Sustenta-se com pessoas, casas, serviços públicos eficazes, planeamento sério e uma economia que não dependa de fantasias de catálogos turísticos.

Chegou o momento de o admitir com franqueza: as prioridades estão de pernas para o ar. Confundiu-se território com cenário, habitantes com turistas eventuais, vida com espectáculo. O Porto Santo não precisa de mais adornos. Precisa de futuro. E futuro não se semeia com relva, semeia-se com dignidade.