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Habitação – Bala de prata ou tiro no pé

O problema habitacional que vivemos resolve-se aumentando a oferta de habitações, mas a preços comportáveis com os rendimentos das famílias

A habitação é neste momento o problema mais grave que a nossa sociedade enfrenta. Sabemos que para o resolver não há balas de prata. E sabemos também que as casas não surgem de um dia para o outro, ao contrário do que demagogicamente pensam alguns milagreiros de ocasião.

E porque o problema é verdadeiramente sério, o caminho só pode ser, neste como noutros domínios da política, o da procura permanente de soluções credíveis e, sobretudo, materializáveis. O caminho, em suma, é a ação. Res non verba.

É por isso que, mais do que proclamar que a habitação é um direito fundamental, o que importa mesmo é continuar a construir novas casas tão depressa quanto possível. Até porque todos também sabemos que as carências habitacionais, porque promotoras de desigualdades sociais e económicas muitas vezes insuperáveis, conduzem a uma polarização da sociedade que lhe mina a estabilidade e a coesão. Cabe aos agentes políticos a responsabilidade de prevenir e combater essa indesejável polarização.

Não compete ao sector privado a satisfação integral do direito de todos a uma habitação condigna. Na situação em que nos encontramos, não será no mercado que encontraremos a resposta aos problemas que enfrentamos. É ao Estado, na complementaridade e subsidiariedade de todos os seus órgãos, que incumbe a responsabilidade de acorrer às carências habitacionais existentes, no quadro de uma política responsável e socialmente equilibrada e justa, que seja capaz de conjugar, sem preconceitos ideológicos e de forma eficaz, os meios e os recursos disponíveis.

Importa sublinhar, não obstante, que tem sido decisivo o envolvimento do sector privado no esforço de mitigação do problema com que estamos confrontados. A criação de um quadro de incentivos à construção de habitações a preços comportáveis aos bolsos das famílias portuguesas tem sido a pedra de toque desse envolvimento.

De facto, a criação, na década de 90, do regime de habitação a custos controlados foi um passo decisivo no combate às carências habitacionais então identificadas no país. Mercê da eficácia desse regime, a classe média com algum poder aquisitivo pôde realizar o sonho de se tornar proprietária da sua habitação a um preço comportável pelo rendimento das famílias.

Em termos gerais, o referido regime consiste basicamente na concessão de benefícios fiscais aos construtores e promotores imobiliários, desde que os limites de preço e áreas por habitação não ultrapassem determinados valores aceites como razoáveis e definidos por lei. A tributação do Iva reduzido na construção dos empreendimentos habitacionais, ao abrigo desse regime, foi um dos benefícios fiscais previstos. E porque o custo de uma habitação depende em grande medida do local onde é construída, o diploma que deu força legal ao dito regime teve o cuidado adicional de ajustar os preços máximos de cada habitação também às circunstâncias e especificidades concretas de cada zona do país.

Com a criação deste regime, e impulsionadas por ele, entre a década de 90 e a primeira década deste século, cooperativas e promotores privados construíram milhares de habitações, disponibilizando-as às famílias portuguesas a preços muito abaixo dos valores de mercado. Tratou-se, portanto, de um tiro certeiro no combate às carências habitacionais. E, durante anos, a oferta e a procura foram estando relativamente equilibradas, ficando as situações extremas sob a alçada direta do Estado.

Na Madeira conjugando o regime de construção a custos controlados com outras medidas de âmbito regional conseguimos impulsionar a edificação de habitações económicas, fazendo aumentar a oferta no mercado privado, mas também reforçando a resposta pública.

Infelizmente, porém, a promoção imobiliária na segunda década deste século, fruto das crises do subprime e das dividas soberanas, sofreu uma forte retração, criando-se assim um problema de oferta. No país, o número de habitações construídas por ano na primeira década foi de cerca de 70 mil. Este número passou para as 14 mil na segunda década do século.

Na Região, as estatísticas refletem também, de forma expressiva, o problema com que hoje estamos confrontados. No período homólogo, a diminuição do número de casas traduziu-se num recuo de 2500 habitações por ano para umas insuficientes 300. Ora, uma retração desta ordem de grandeza não podia deixar de ter severas consequências. Até porque, para agravar ainda mais a situação, as poucas habitações construídas nesse período destinaram-se, na sua grande maioria, ao segmento mais alto e não à classe média carenciada, em virtude de uma maior exigência, na concessão de crédito, por parte das instituições financeiras.

Perante tal cenário, e com a disponibilização do pacote financeiro do PRR, o Governo Regional decidiu voltar a dar um novo impulso à construção de habitação a custos controlados. Nesse sentido, desencadeou, para isso, ofertas públicas para a aquisição de habitações construídas por privados, na condição de as mesmas cumprirem todos os requisitos, em termos de tipologias, áreas e preços, impostos pela lei.

Ou seja, com as metas e prazos exigentes impostos pela União Europeia na execução do PRR, o Governo regional optou, como devia, por envolver os promotores privados no processo de construção de novas habitações. Essa estratégia dará, estou convicto, os resultados esperados. Muitas situações de carência habitacional serão ultrapassadas. Porque os promotores privados aderiram francamente bem a esta iniciativa do Governo. Porque, em consequência, estão já a ser construídas habitações a custos controlados em todos os Concelhos da Região. E porque seria uma enorme irresponsabilidade, e um erro histórico e político colossal, não aproveitar integralmente as verbas da UE a que temos direito por falta de capacidade de execução.

É pertinente sublinhar, aliás, que esta estratégia não se esgotava na mera utilização das verbas do PRR. Pelo contrário, existem projetos para se continuar, no futuro, a desenvolver uma política de aumento da oferta de habitação a custos controlados. Até porque, volto a sublinhá-lo, a experiência demonstra que o sector privado a ela tem estado recetivo.

Receio bem, no entanto, que fatores que não controlamos possam comprometer a estratégia habitacional delineada que tem na habitação a custos controlados um pilar fundamental. Refiro-me, em concreto, a uma medida anunciada recentemente pelo Governo da República que alarga o limite do benefício da tributação do IVA reduzido a habitações com o preço final de 648 mil euros.

Como é bom de ver, o resultado futuro expectável de uma medida como esta será o de desviar os promotores imobiliários para a construção, para eles mais rentável, de habitações muito acima das possibilidades da classe média. 648 mil euros é o preço de uma casa de luxo. Só uma minoria muito minoritária da população portuguesa pode pagar um preço dessa ordem de grandeza. E eu temo que o impacto desta medida seja pernicioso também ao ponto de fazer aumentar o valor da venda de novas habitações, agudizando dessa forma o problema habitacional que o país e as suas diversas regiões enfrentam. A nossa experiência no que diz respeito aos tetos máximos não engana. Começam por ser uma referência com carácter excecional. Mas, num ápice, puxam os preços para cima e tornam-se regra.

Acresce que esta medida revela uma visão centralista do país. Parece ter sido desenhada a pensar, sobretudo, nos preços praticados no mercado de habitação de Lisboa. Como se o valor de venda de uma habitação em Trás-os-Montes ou na Madeira fosse igual ao valor praticado em Lisboa. Não se compreende uma uniformização do limite do valor de venda em todo o território nacional, uma vez que há especificidades regionais e locais que devem ser atendidas. É um erro tratar pois de forma igual aquilo que é substancialmente diferente.

O problema habitacional que vivemos resolve-se aumentando a oferta de habitações, mas a preços comportáveis com os rendimentos das famílias, conforme previsto no regime de habitações a custos controlados. Estabelecer um limite de venda de 648 mil euros para todo o país na concessão de um benefício fiscal em sede de IVA irá continuar a incentivar a construção de habitações, não a preços comportáveis, mas sim a preços inacessíveis à esmagadora maioria das bolsas portuguesas. E isso pode ter o efeito perverso de esvaziar completamente um regime que foi a chave do sucesso das políticas habitacionais nestes 50 anos de democracia.

Quero acreditar que a intenção do Governo da República possa ter sido simplificar o sistema ou dar um choque de oferta generalizado. Receio, todavia, que o efeito prático venha a ser o de continuar a agravar o problema, se nada for, entretanto, corrigido.

O Governo da República, na regulamentação desta medida, tem tempo de emendar a mão. E se alertas como este não forem acolhidos, ao menos que sirvam para refletirmos sobre a necessidade imperiosa de, também neste domínio de habitação, precisarmos de mais autonomia, de modo a podermos escolher os caminhos que mais nos convêm, e continuarmos, assim, a dar uma resposta efetiva aos anseios da população.