Crónicas

O Curral Velho, esse lugar distante

Lembro-me de ir ao casamento do meu primo Gabriel e de como o meu pai se empenhou em fazer boa figura na festa do afilhado, até tirou de dentro do armário um fato

O meu pai saiu do Curral Velho aos 30 e nos 54 anos que se seguiram limitou as visitas ao indispensável. Lembro-me de ir ao casamento do meu primo Gabriel e de como o meu pai se empenhou em fazer boa figura na festa do afilhado, até tirou de dentro do armário um fato. Parece que estou a vê-lo a passar o pente pelo cabelo, ali, no quarto onde a minha mãe passava a ferro e estava dependurado um espelho grande.

Não sei se o casamento calhou em época de mais folga de dinheiro, mas dessa vez não houve discussão por causa do preço da prenda aos noivos e a minha mãe ficou feliz por ir de braço dado com o marido, o homem que ela sabia que ficava ainda mais bonito de gravata. Nem sequer no fim da festa, quando descemos todos a pé sem que o meu pai viesse de lá com a cabeça toldada pela bebida.

E durante anos e anos aquele sábado à noite foi o exemplo que deu para explicar como podia ser tudo, mas o meu pai era uma pessoa marcada pelas circunstâncias, que virara as costas ao lugar da infância para esquecer como tinha sido duro crescer numa casa onde o frio passava por debaixo da porta e o jantar não estava garantido. O Curral Velho trazia-lhe a humilhação, a vergonha e tudo o que vem agarrado à condição de ser pobre.

Ainda miúdo fez-se moço de uma casa rica e, na escala social, ser moço era o mais baixo por onde um rapaz podia começar. A experiência ainda o magoava aos 84 anos, estava lá naquele arquivo de humilhações. O meu pai lembrava-se de todos os detalhes. Outra pessoa teria esquecido, passado por cima, seguido em frente. E também fez isso: casou, construiu uma casa e educou dois filhos, mas um homem orgulhoso não consegue arrumar tudo.

Todos os dias subia para a parte da frente da furgoneta que o levava para as obras e, aos domingos, fazia um discurso sobre os estudos, sobre não ser um escravo. Para ele não havia outro remédio, para nós seria diferente, bastava querer e não se distrair. E quando bebia mais a conversa era mais emocionada, por nós daria tudo, sobretudo por mim, que era menina. E as pessoas sabiam que o caminho era mais delicado e frágil para uma menina.

A origem trazia-lhe más memórias, mas quando o meu primo Gabriel e a noiva vieram à nossa casa trazer o convite tocaram no coração do meu pai, na parte mais bonita e sensível, a que só a minha mãe sabia que existia. O meu pai agradeceu o gesto do afilhado com um presente bom e levou-nos à festa com as nossas melhores roupas. E com isso mostrou como era de facto por debaixo daquelas camadas todas de humilhação e raiva.

O dia em que o meu primo Gabriel se casou e deu uma festa em casa – daquelas à moda antiga – é uma das minhas melhores lembranças da infância e do amor dos meus pais. E embora as memórias dos meus tios, tias e primos do lado do meu pai sejam escassas, esta guardo com carinho, pois crescer com a minha mãe e o meu pai não foi sempre fácil, simpático ou alegre. A vida nunca é apenas isso.