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O sapo e o escorpião

Não deve haver vergonha em escolher o caminho da compaixão

Quando a influência parental/familiar na educação das crianças era dominante em relação à social, paradigma substituído ou, no mínimo, atacado pela introdução das redes sociais que cada vez mais cedo são acedidas por menores sem o mínimo de supervisão, boa parte do “crescer” e do aprender dava-se através de parábolas, cujas histórias comportavam, como sabemos, um conteúdo moral. Por norma, estas narrativas sempre se concluíam com lições de vida sobre a forma como alguém (o ouvinte) devia agir, como no caso da de “Pedro e o Lobo” que chega à concisa conclusão de que não se deve mentir para não arcar com as consequências. Contudo, existe uma parábola que, apesar de assim ser tipificada, deixa sempre no ar um certo tom de incerteza, não sobre a lição que quer transmitir sobre as pessoas (que é suficientemente óbvia), mas sim sobre o que pretende que seja espoletado no recetor da história. E essa é a parábola do sapo e do escorpião.

Nesta curtíssima história, acontece que um escorpião pede ajuda a um sapo para cruzar um rio. Naturalmente que o sapo hesita em aceitar esta proposta já que, ao fazê-lo, corre o risco de ser picado mortalmente pelo invertebrado. Mesmo assim, o escorpião acaba por convencer o anfíbio argumentando que não faria tal coisa já que isso resultaria na morte de ambos. A meio da travessia, todavia, os medos do sapo são confirmados e o escorpião acaba picando-o, condenando-se a si e a ele à morte. Nos seus últimos momentos, o sapo pergunta por que é que o escorpião o picou sabendo que isso seria a sua sentença de morte e o escorpião responde: “porque é essa a minha natureza”.

Ora, como é evidente, a história pretende transmitir a ideia de que nem toda a gente é de confiança e de que há gente que não muda por mais que tente, sendo isto levado ao extremo quando o escorpião acaba por abdicar da própria vida de forma involuntária visto ser a sua natureza picar. Contudo, este significado simplificado da história parece incompleto, já que o sapo é reduzido ao papel de figurante e ao de vítima perfeita – algo incoerente nas parábolas já que nelas se pretende centrar o protagonista como alguém dotado de capacidade de escolher o seu caminho (veja-se o caso do “Pedro e do Lobo” em que o Pedro faz o mal e paga por isso). É óbvio que naquela história se pretende que o ouvinte se identifique com o sapo, mas, da forma como a história tem vindo a ser apresentada ao longo dos tempos, formou-se a ideia de que o ouvinte/sapo não passa de um objeto nas mãos do destino. No entanto, não o é.

Assim, qual é o papel do sapo em toda esta história? É o papel da bondade e do mártir do bem, porque, tal como o escorpião segue a sua natureza hostil, também o sapo segue a sua índole altruísta cada vez que a história é contada ao aceitar a proposta que, inevitavelmente, acaba sempre na sua morte porque, se em algumas versões da história já não há lugar para a pergunta ao escorpião após o golpe fatal, em todas o desfecho é sempre o sacrifício do pobre anfíbio.

Num mundo como o nosso, onde a maldade e a malícia foram banalizadas e onde a bondade é sempre colocada sobre as lentes do relativismo e do cinismo, a parábola do sapo e do escorpião nunca foi tão importante. De uma forma que transcende a própria história, os eventos que decorrem entre estes dois animais demonstram que, por mais que na aparência o mal triunfe (a morte do sapo no rio), a verdade é que o bem sempre se coloca num patamar mais elevado. Enquanto o coitado, porque só se lhe pode prestar pena, do escorpião não tem poder de escolha, estando acorrentado às suas pulsões internas auto-destrutivas, ao sapo é oferecida uma escolha que, como sabemos, é tomada em prol do escorpião, mesmo o altruísta sapo sabendo das consequências que o esperam. Importa, pois, relembrar que, por mais que o mundo direta e indiretamente incentive ao comportamento malicioso e antipático para com os demais, não deve haver vergonha em escolher o caminho da compaixão, mesmo quando se é, ironicamente, criticado por isso. Porque, ao passo que o escorpião força a sua própria autodestruição, o sapo martiriza-se em nome da empatia e da generosidade que lhe vão no coração.