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Achei sempre mais cauteloso manter o número fora das paixonetas, que, a bem da verdade, não foram muitas

O telefone preto que os senhores dos correios instalaram na minha casa em 1984 nunca teve uma mesa própria, nem um caderno para apontar números ou recados. A minha mãe dispensou o luxo e deixou-o em cima do aparador do quarto de jantar por cima da lista telefónica, onde no ano seguinte passou a constar o nome do meu pai e o nosso número.

O que me encheu de orgulho e vaidade, uma sensação estranha e boa, muito semelhante ao dia em que chegou a televisão a cores e os campos de futebol passaram de um cinzento médio ao verde vivo da relva. O telefone, como a televisão, era nosso e eu podia dar o número a quem quisesse: às amigas ou a um rapaz de quem gostasse.

Embora esta última parte fosse mais complicada de gerir. Os pais de 1984 eram diferentes dos pais de agora e eram tão diferentes como a distância que separa o modelo de telefone preto e o smartphone de última geração. Fosse uma inclinação passageira ou um namoro inocente, seria sempre tratado como um assunto de estado, um caso de vida ou morte.

A minha mãe e o meu pai iriam perguntar pela família, se era bom rapaz, se tinha boas intenções, se era para casar. E o tema ainda seria discutido no domingo à tarde pelas minhas tias, numa espécie de conselho familiar, que tinha sempre a última palavra sobre todos os assuntos.

A ideia de ter os meus sentimentos mais privados num debate de tias, todas senhoras com mais de 50 anos e maneiras de pensar a condizer, era demasiada exposição. De modo que dar o número de telefone causava boa impressão, mas eu morria de medo que me ligassem depois do almoço de domingo e se levantassem suspeitas de que me apaixonara.

O amor e a adolescência eram complicados de gerir nos anos 80. Por um lado exigia coragem para se aproximar, falar assim cara com cara e arriscar um não redondo, daqueles que doíam até aos ossos. Quando corria bem, havia o resto: ligar para casa e enfrentar uma mãe ou um pai complicado e, pior, enfrentar as famílias.

Os tempos tinham mudado, mas os pais ainda acreditavam que os namoros, todos os namoros, deviam acabar num compromisso, em noivado e depois casamento. A questão é que nós não sabíamos se ia durar ou acabar em três dias. Não era possível dar garantias aos 15, 16 anos, dizer que aquele colega, ainda com borbulhas na testa, era o tal, o certo.

Eu não sabia e, embora me sentisse orgulhosa por ter um telefone em casa e não ter de dizer que era de uma vizinha ou da mercearia, achei sempre mais cauteloso manter o número fora das paixonetas, que, a bem da verdade, não foram muitas. Afinal, fui uma adolescente típica, com muitas inseguranças. Por ser gordinha, por não ter roupas bonitas e mais um rol de manias que me impediam de olhar para mim e para os outros com clareza.