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Análise

Portugal sistematicamente adiado

Marcelo Rebelo de Sousa fez o óbvio, mas esticou em demasia uma gestão sob suspeita

A versão papal do mediático apelo “Não tenhais medo” reapareceu na noite de quinta-feira, em formato televisivo e em tom presidencial, com Marcelo Rebelo de Sousa a assumir querer devolver aos eleitores o poder da escolha soberana, “sem dramatizações nem temores”, porque “é essa a força da democracia: não ter medo do povo”. Só que até que haja novo governo neste País sistematicamente adiado, com o actual executivo demissionário, em investigação e em mera gestão, é de temer o pior. Num ápice parece que quem desfez o empate a pensar no futuro se esqueceu das razões fundamentais que estão na base de nova crise política, perfeitamente dispensável se quem jura solenemente servir o País fosse consequente e tivesse um pacto com a credibilidade, o rigor, a transparência e o bem colectivo, não transformasse os gabinetes do poder em cofres, nem tivesse alucinações.

António Costa demitiu-se de Primeiro-Ministro. Mesmo tendo a maioria absoluta. Mesmo não sendo arguido. Mesmo que alguns seus próximos tenham sido apanhados em ‘flagrante de lítio’. Mesmo que seja óbvio que, numa nação em que a justiça é lenta nas decisões, mas célere no alarido, a função de primeiro-ministro não é compatível com a instauração de um inquérito contra si próprio, num contexto em que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, denunciou dias antes, em entrevista ao ‘O Nascer do Sol’, a “corrupção instalada” em Portugal. Mesmo assim, depois de 40 buscas judiciais no âmbito do inquérito sobre o hidrogénio e o lítio, a mesma que apanhou o ministro Galamba que Costa não deixou cair, afrontando Marcelo, e gente de confiança do seu círculo de amigos e cúmplices, governa até bem depois de 10 de Março. E se entretanto, “mais depressa do que devagar”, a Justiça decidir acusar quem manda?

António Costa garante que, em consciência, de modo geral, no exercício das suas funções, não agiu de forma ilícita ou censurável. E que vai colaborar “em tudo o que entenda necessário para apurar toda a verdade, seja sobre que matéria for”. Talvez seja tarde demais pois o julgamento está feito, independentemente do resultado da investigação. E uma vez mais, com estrondo, lá se foi a presunção de inocência.

António Costa disse “olhos nos olhos aos portugueses” o que lhe ia na alma, e com dignidade assinalável, não deixou nenhum jornalista sem resposta. Por muito menos, lemos, vemos e ouvimos outra tipo de gente a fazer declarações insignificantes sem direito a perguntas.

António Costa abre um precedente sem paralelo nos altos patamares da política nacional, também visto nalguns círculos como uma proeza. Devia fazer escola esta lucidez de que há cargos públicos que não se coadunam com as suspeitas de corrupção ou de favorecimento. Por isso, quem estiver envolvido em casos similares, deve, com dignidade, seguir-lhe o exemplo.

Até Marcelo Rebelo de Sousa detectou tamanha virtude. Mas prolongou em demasia o suplício que dita a antecipação das eleições. No poder, mesmo em gestão e sem arguidos, ficam demoradamente os que são suspeitos, logo, fragilizados politicamente e com credibilidade ferida.

O Presidente da República justifica porque revelou simpatia pelos que, em vários quadrantes políticos, precisam de tempo para ganhar fôlego. Os socialistas terão que escolher nova liderança. Os social-democratas terão sobretudo que ganhar coragem e vontade em ter propostas efectivas para o País.

De resto, fez o óbvio. Num governo desprovido de Costa quis pôr a democracia a funcionar, mesmo correndo sérios riscos em pleno 50.º aniversário do 25 de Abril. E o maior é permitir que os extremismos que atentam contra direitos, liberdades e garantias tomem conta da equação. E foi coerente. Desde a primeira hora, logo na tomada de posse, que deixou claro que não aceitaria ficar ligado a um governo PS sem Costa, na altura dado como provável na Comissão Europeia, mas hoje sem tempo para sonhos.

O País que desespera por soluções em vários quadrantes vai assim para eleições, sem que antes tenha dado passos concretos para evitar o caos cíclico, como bem lembrou Alberto João Jardim no antigo twitter, ao considerar que a decisão respeitável não altera nada em Portugal, dando a entender que a bandalheira vai perdurar enquanto não houver uma mudança de fundo na Constituição Portuguesa e no sistema político.