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Crónicas

Reparentalidade já

Acho mesmo que é urgente perguntar e reflectir como é que as palmadas educam para os direitos humanos? Que guerras estamos a travar? Como podemos cultivar e nutrir mais paz? Do que estamos a ser exemplo para as novas gerações?

Incomoda-me muito a normalização da violência, seja ela física, verbal e emocional, principalmente, quando perpetuada e defendida por pessoas que ocupam lugares de responsabilidade acrescida. Antes de continuar refiro que esta crónica nasce de um lugar de muita preocupação sobre o futuro das relações humanas, existe aqui uma grande vontade de influenciar positivamente e a principal intenção é a de convidar à reflexão profunda, num mundo que parece às avessas, onde a violência (extrema) ganha terreno. A melhor forma de ler esta crónica pode ser com uma mente de principiante e curiosidade, evitando julgamentos enquanto lê, refletindo sem os filtros habituais.

Vejo (com alegria) cada vez mais pessoas contra os maus-tratos a animais e, que ainda assim, defendem a “palmada na hora certa”, “a palmada educativa”, a “palmada pedagógica”, “o sacudir o pó” a uma criança. No seculo XXI, às portas de 2024, ter de abordar este tema deixa-me angustiada, confesso. Angustiada porque devemos ser o porto seguro para os nossos filhos que são os seres humanos mais vulneráveis, em desenvolvimento, são tesouros únicos, que nos amam incondicionalmente, que veem em nós o exemplo. Um filho maltratado pelos pais, não deixa de amar os pais, deixa de se amar a si próprio.

A ciência já demonstrou, de forma muito evidente, que palmadas são violência. São a raiz da violência no namoro, da violência doméstica, da violência étnica, da violência contra os idosos e deficientes! A palmada a única coisa que ensina é que alguém mais forte, maior, pode conseguir o que quiser de pessoas mais fracas e vulneráveis, batendo-lhes. Ensina, pelo medo e pela agressão, a obedecer. O que os especialistas dizem é que a palmada pode parecer eficaz para pôr fim a um determinado comportamento, mas a solução é extrema e apenas provisória - a criança reage por medo e não por ter aprendido alguma lição. E não poucas vezes, as crianças começam também a levantar a mão aos pais, porque aprendem que essa é a maneira de reagir quando se está zangado. Comportamento gera comportamento.

A agressão física, onde a palmada se inclui, diz-nos muito acerca da desregulação emocional e dos estados internos de nós próprios, adultos e da perda da nossa capacidade para investigar e lidar com o comportamento da criança. Passa de geração em geração. Se levamos a sério a proteção das crianças contra a violência, temos que substituir as práticas de controlo e obediência por conexão, respeito e amor incondicional.

Há alternativas à dita ‘palmada pedagógica’, só que sempre que pergunto a uma audiência se está interessada em saber quais são, raramente alguém demonstra interesse. Ainda escuto “isso é normal”, “eu também apanhei e só me fez bem” ou, “uma palmada bem dada no momento certo faz milagres”. Embora nos fosse conveniente, até ao momento, a ciência comportamental não partilhou nenhuma solução para que as crianças se “portem sempre bem” (até porque é algo absolutamente subjetivo). E dito isto, também é essencial recordar que para as crianças se poderem “portar bem” é obrigatório que se portem também,”mal”.

São já 50 anos e mais de 1500 estudos científicos publicados que fundamentam que a palmada causa danos neuro-cognitivos e emocionais, muitas vezes irreversíveis. E se a dor física desaparece, a dor emocional cria traumas. O Dr. Peter Levine lembra que o “trauma não é o que nos acontece, mas o que guardamos dentro de nós, na ausência de uma testemunha empática.” E um adulto que bate numa criança, não está definitivamente, a ser empático. As palmadas impedem o são desenvolvimento moral, social e neuro-cognitivo das crianças. Aumentam ainda a probabilidade de estas desenvolverem comportamentos delinquentes, problemas de saúde mental, transtornos de ansiedade, depressão e adições. Crianças vítimas de palmadas demonstram menos massa cinzenta no córtex pré-frontal e amígdalas hipervigilantes. Os estudos sugerem também, que estas crianças veem alterada a sua função cerebral que acaba por se assemelhar à de crianças vítimas de maus-tratos graves e até abusos sexuais. Podia continuar, mas não temos espaço. Dediquei um capítulo a este tema, no meu livro “Gurus de Palmo e Meio”. Na era da informação ser ignorante é uma escolha, portanto, não há desculpa para perpetuar este crime. Além da informação oferecida pelos estudos, é como sempre, essencial, muita paciência e amor incondicional. Ingredientes ausentes quando damos uma palmada e que são fundamentais na educação/ orientação de uma criança. Bater num adulto é agressão. Bater num animal é crueldade. Como é possível defender que bater numa criança seja algo normal, seja uma estratégia educativa?

“Segurança não é ausência de ameaça, é a presença de conexão.”
     Dr. Gabor Maté

Concordo que não existe uma forma certa de educar, mas também sei que por trás de cada comportamento desafiante existe uma intenção positiva (na sua origem), necessidades e emoções que precisam de ser reconhecidas. Portanto, escolho (mesmo quando me custa muito) entender o que está na génese de um comportamento, em vez de corrigi-lo com uma palmada e enterrar emoções e necessidades. E isto é válido para adultos e crianças. Porque sei que quando conseguimos fazer esse reconhecimento a situação transforma-se. Estaria a mentir se dissesse que fui uma mãe sempre assim, não fui e não me orgulho disso. Mas investiguei, estudei, aprendi. Reeduquei-me. Fiz, e continuo a fazer, o meu processo de reparentalidade. Ganhei consciência, trouxe-a para a prática e agradeço por isso, diariamente. É por isso que defendo, com a vivência da parentalidade generativa, que a relação pais – filhos pode ser a mais espiritual de todas as relações humanas. Educar, não é sobre perfeição, é sobre conexão.