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Lei do Mar: o ataque

A Assembleia da República discute uma Proposta de Lei que altera a Lei de Bases da Política de Ordenamento e Gestão do Espaço Marítimo Nacional, a denominada Lei do Mar, e que acaba por eliminar o “parecer obrigatório vinculativo das regiões autónomas” na aprovação dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional que respeitem à plataforma continental para além das 200 milhas marítimas e por retirar o poder legislativo das regiões sempre que estejam em causa áreas adjacentes aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas.

A alteração surge na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional que pôs em causa as normas que conferem uma verdadeira “faculdade de codecisão, no âmbito da gestão conjunta ou partilhada, entre a administração central e regional autónoma”, essencialmente por entender que se trata de bens do domínio público que têm uma conexão íntima com as funções de soberania e defesa do Estado e mesmo com a sua identidade. O Tribunal Constitucional considera “o mar circundante das regiões autónomas um bem dominial integrado necessariamente no domínio público marítimo estadual, atenta a incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais” e tem justificado a exclusão do domínio público regional pelo facto das águas territoriais e fundos marinhos contíguos da plataforma continental integrados no território regional serem “inerentes ao próprio conceito de soberania”, sendo, para o Tribunal Constitucional, “questionável a possibilidade do Estado abdicar do poder de ordenar o espaço marinho, transferindo o seu exercício para as regiões autónomas, ainda que parcialmente”.

Não se compreende, de facto, este entendimento do Tribunal Constitucional, desde logo porque a própria lei salvaguardava as “matérias relativas à integridade e soberania do Estado”. Acresce que não se pode confundir a questão da titularidade do domínio público, que é absolutamente inquestionável, e relativamente à qual o Estado mantém todos os poderes, com a possibilidade que é dada ao titular de, respeitando o quadro legal autonómico, definir com as Regiões Autónomas a gestão do mar, até porque o direito de participação, consagrado na Constituição da República Portuguesa, não pode ser apenas um mecanismo formal de mera audição ou auscultação semelhante ao dos municípios. Para além disso, a Constituição impõe a articulação entre o Governo da República e os Governos Regionais que podem acordar “formas de cooperação envolvendo, nomeadamente, atos de delegação de competências, estabelecendo-se em cada caso a correspondente transferência de meios financeiros e os mecanismos de fiscalização aplicáveis”. Ora, estou em crer que um mecanismo legal codecisório e a transferência de competências só reforçariam a própria soberania do Estado neste quadro de respeito pela Constituição e pelas autonomias que ela própria consagra. Aliás, diria mesmo que tenho sérias dúvidas acerca da constitucionalidade de um diploma que retira às Regiões Autónomas poderes sobre o seu próprio território.

As “regiões autónomas são pessoas coletivas territoriais”, abrangendo a Região Autónoma da Madeira “o mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e zona económica exclusiva”, e gozam de um estatuto constitucional que não pode ser desconsiderado ou derrogado, não se admitindo a retirada de competências que a Constituição e o Estatuto Político Administrativo historicamente consagram.

Esta Proposta de Lei, nesta parte, é manifestamente precipitada e surge na sequência de uma posição jurisprudencial que nem sequer mereceu a concordância do então Presidente do Tribunal Constitucional que, numa declaração de voto de muito carácter e lucidez, acabou por distanciar-se daquele juízo de inconstitucionalidade. Este impulso legislativo representa mesmo um grave retrocesso no processo autonómico. O que se exigia ao poder político era uma intervenção constitucional clarificadora que evitasse interpretações hostis à autonomia, nunca uma subversiva alteração legislativa à boleia de uma posição jurisprudencial que desrespeita toda a construção autonómica. Não pode o legislador nacional afastar as Regiões Autónomas deste processo de codecisão e de gestão partilhada do espaço marítimo e de decisão sobre o seu próprio território. O diploma agora em discussão na Assembleia da República, ao incluir a classificação das “áreas marinhas protegidas” no conceito de instrumento de ordenamento do espaço marítimo nacional, retira à Região uma competência que é hoje da Assembleia Legislativa Regional e que esteve na origem do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2022/M, de 3 de maio, que aprovou o novo Regime Jurídico da Reserva Natural das Ilhas Selvagens, criando aquela que é a maior reserva integral marinha da Europa e do Atlântico Norte.

Devo alertar para o facto de já não estar apenas em causa a gestão do nosso mar. É mais do que isso. Este é um momento muito tenso e delicado, pois esta Proposta de Lei socialista constitui um dos mais impiedosos e insensíveis ataques à nossa autonomia, um ataque subtil e sem precedentes que exige uma reação muito firme e assertiva, sob pena de deixarmos que comprometam as mais sagradas conquistas históricas do povo madeirense.