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A (nova) Democracia de audiências

Os políticos sabem que se planeiam ter futuro nesta área precisam de ter admiráveis competências comunicativas

1. Muitos dizem que foi na afamada Atenas, há cerca de 2600 anos, na altura uma pequenina cidade mediterrânica, que se forjou uma maneira de governar completamente nova e inovadora. Nas aulas da disciplina de História ouvi (e aprendi) que um dos maiores legados que nos foi deixado pelos gregos (atenienses), foi a democracia (dēmokratia), um sistema (modelo) político que só no século XX se generalizou e que agora se encontra em perigo/crise, asfixiado, decadência ou declínio.

Parece que a democracia ateniense começou por ser edificada por Clístenes, quando foi instituída a igualdade de direitos entre todos os cidadãos, que deste modo permitia a todos a participação nas decisões e cargos políticos da polis. Entretanto, há uma outra figura relevante na Atenas do século Vº a.C., um militar e político a quem é atribuída a consolidação da democracia grega – assegurando a igualdade entre os cidadãos – e a construção do célebre Parténon: Péricles (495-429 a.C.). Durante o período de vigência da dēmokratia grega, todos os cidadãos tinham direito a uma remuneração pelo exercício de cargos políticos e pela participação na Eclésia. A Eclésia era uma assembleia onde todos os cidadãos atenienses, maiores de 18 anos e com o serviço militar cumprido, podiam discutir os problemas e participar (e votar) nas decisões da sua cidade-estado (polis). Vigorava, então, uma democracia direta, pois os cidadãos participavam diretamente nas discussões e decisões políticas, em vez de votarem nos seus representantes, como acontece nos dias de hoje nas modernas e liberais democracias representativas.

A velha democracia ateniense baseava-se, assim, na participação direta de todos os cidadãos através da Eclésia, mas esta também tinha algumas limitações e/ou restrições: por exemplo, as mulheres, os metecos (estrangeiros residentes em Atenas) e os escravos não eram considerados cidadãos, e por isso não tinham assegurados os direitos políticos destes. Além disto, a liberdade de expressão era limitada e algumas críticas feitas aos governantes não eram toleradas, havendo casos em que existiram condenações ao ostracismo (exílio de 10 anos) ou à morte (por exemplo, o caso de Sócrates). Apesar destas insuficiências, o novo regime político foi inovador, vanguardista, sem paralelo no seu tempo e constitui uma das principais heranças da cultura e política europeia, melhor, ocidental.

Ora, esta é a versão corrente e romanceada da invenção da democracia – o “mito das origens” – que, no começo, pretendia significar um ‘autogoverno por e entre iguais’, os cidadãos livres (e orgulhosos) de Atenas que em assembleias mensais procuram resolver os problemas e desafios da sua comunidade, ao mesmo tempo que celebravam os seus deuses em grandes festas sazonais, num avançado estado de embriaguez, ostentado belas grinaldas de flores. Seguramente, a democracia, que subverteu a ordem até aí instituída, não surgiu de um dia para o outro e desta forma linear e pacífica. Ela nasceu da resistência à tirania, da coragem e vontade de alguns homens que viram punhais e xiphos (espadas hoplitas) a trespassar suas entranhas e gargantas. As prudentes fontes históricas dizem-nos que a democracia é filha também de um repositório de crimes, de uma verdade incómoda, de intenções e mãos pouco “límpidas” que empregaram alguns meios pouco (ou mesmo nada) democráticos, de assassinatos, em suma, de um rol de acontecimentos sinistros e extraordinários que a elevaram hoje ao estatuto de transcendente e universal.

2. Diz a Constituição da República Portuguesa (CRP), no artigo 2.º, que “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular (…)” e que visa a “realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. No entanto, e infelizmente, o estado atual da nossa democracia seguiu um rumo bem diferente ao prescrito na redação da lei suprema (e intento do legislador), divergente da velha prática direta (participativa) da democracia de assembleia ateniense, assim como da sua “filha bastarda”, reflexo da ascensão da burguesia e do liberalismo, a democracia representativa na qual o povo só pode falar e só pode atuar através dos seus representantes. Em Portugal (e noutros países), vivemos hoje numa “nova” democracia de audiências, democracia onde a política se tornou num espetáculo mediático, uma forma de “entretenimento” onde as distintas (e emergentes) personalidades da política procuram beneficiar, melhor, capitalizar para si toda uma espécie de ganhos em termos de visibilidade, notoriedade, prestígio e de audiência (quase idêntica à das contemporâneas estrelas do mundo do desporto, música ou cinema). Se, por um lado, o cidadão comum (eleitor) está cada vez menos interessado (e dedicado) em seguir a atualidade política – através dos media tradicionais ou da leitura de artigos ou obras da especialidade –, por outro, novos géneros televisivos (debates, talk-shows, entrevistas não políticas, programas de humor ou de sátira política…) ajudam a captar audiências de espectadores pouco politizados, mas que se deixam ‘levemente’ persuadir pelos apelos (e argumentos) políticos de quem com eles colabora. Segundo a cientista política e Professora Conceição Pequito, vivemos agora numa “democracia de audiência, feita de comunicação social, sondagens e líderes, em que há uma espécie de sondocracia, de videocracia e de lidercracia”. Mais: os cidadãos deixaram de se rever e reconhecer nos atuais partidos políticos (cada vez mais desideologizados) – apesar de mais de duas dezenas estarem inscritos no Tribunal Constitucional –, pois estes funcionam de forma oligárquica e sonegaram a soberania popular, que lhes é delegada pelo voto e que deveriam efetivamente representar.

Numa sociedade (e conjuntura) em que os cidadãos estão bastante afastados dos partidos, em que o povo não se sente por eles representado, onde quase não há sociedade civil e pensamento crítico; onde as diferentes formas de participação política – que deveriam reforçar a democracia – são praticamente inexistentes; onde o referendo popular é recente e pouco recetivo por parte de quem governa; em suma, onde a “qualidade” da democracia só interessa a uma diminuída minoria, então todos percebemos que a via para o processo de celebrização da política (e personalização), que fez com que os nossos políticos se tornassem em celebridades, foi/era não só o caminho mais fácil, como inevitável. No espaço de pouco mais de 40 anos passamos, então, de uma democracia de partidos (que apresentavam e debatiam programas eleitorais, que agora ninguém já lê ou conhece) para uma democracia de audiências, na qual o meio televisivo é preponderante e faz do ato de governar um estilo de vida apetecível e também um produto de consumo que rivaliza com outros na esfera da comunicação e do marketing.

Recentemente, um jornalista bem conhecido da nossa praça regional disse que “o ridículo tem muita exposição e muita audiência”. De facto, os políticos percebem muito bem tudo isto, assim como sabem que se planeiam ter futuro nesta área precisam de ter admiráveis competências comunicativas (e um grande à-vontade), mesmo que aquilo que digam sejam mentiras ou superficialidades. O que interessa é o líder, dirigente, ministro ou secretário de estado (ou promissor deputado) ter palco na TV! Os partidos, as suas ideologias, os programas eleitorais, estatutos, declarações de princípios ou regulamentos já não servem para (quase) nada. António Costa, uma celebridade da política e televisiva, compreendeu na perfeição como tudo isto funciona e por isso, num domingo, para obter uma boa quota de audiências, anunciou ao país um novo “Acordo de médio prazo para a melhoria dos rendimentos, dos salários e da competitividade”, até 2026. Tudo “boas” notícias para os apáticos espectadores! Porém, com esta mensagem – e com uma maioria absoluta na Assembleia da República – esclareceu que sobre estas matérias não irá dialogar com os restantes partidos da oposição. Perante isto, certos analistas políticos do regime dirão: “é a (nova) democracia a funcionar!”.