Crónicas

Sem lei nem roque

Se queremos ser excepcionais na resposta à Covid-19, convém que o sejamos também naquilo que os governos tipicamente não são. A emendar a mão

Quase tudo se disse sobre a nova obrigação de usar máscara na via pública. Falta porventura notar uma coisa, o que se fará enquanto ainda é tempo: ela revela desprezo pela Lei.

Um desprezo que não se fica pelos Seus ritos, as suas formas e processos, mas se estende à essência da Lei enquanto fundamento e limite da actuação do Estado.

Compreende-se o argumento do Governo. A nossa Constituição não estava preparada. Não fossem as medidas tomadas além dos poderes regionais, e estaríamos hoje à mercê da pandemia, e não seguros como irrefutavelmente estamos. Esse argumento só vale, porém, para a parte política, para a distribuição de competências entre Região e República, para a destrinça entre legislação ordinária e de emergência. A questão das máscaras é mais profunda, e desponta do próprio espírito das regras.

Ao prever uma punição, uma multa para andar sem máscara na via pública, o Governo incluiu, inadvertidamente, essa conduta na controversa categoria de delitos acumulativos ou de perigo abstracto. Poupando-vos à – complicadíssima – discussão, tais delitos baseiam-se na necessidade de punir comportamentos que, “se toda a gente fizesse igual”, teriam consequências catastróficas. Passar um sinal vermelho é um exemplo clássico. As normas deste género usam-se para punir condutas individualmente inofensivas, mas que somadas contribuem para a verificação de riscos colectivos – riscos ambientais, genéticos, financeiros, e, lá está, de saúde.

Não vinha daí mal ao mundo. O pior é que o Governo se julga investido de uma qualquer ultra-legitimidade sanitária, e dispensou-se – a pretexto de uma sacrossanta segurança – de se acautelar contra as identificadíssimas esparrelas destas normas.

Começando pela sua necessidade. A punição só será legítima se o comportamento castigado contribuir inequivocamente para o crescimento do risco. Um cidadão isolado e distante dos demais, no espaço público, não representa sem máscara um risco para ninguém. E havia métodos menos lesivos de prevenir o contágio, impondo a máscara em aglomerados, ou mesmo em locais, eventos e até datas específicas, mantendo a recomendação nos demais. Esse é o primeiro tiro na água.

O segundo deriva da – estranhíssima – opção de tornar a máscara regra, apaziguando-a com inúmeras exceções, como as praias, o exercício físico, e os passeios na natureza. Como se vê, a extrema delicadeza destes delitos exige das normas que os contêm uma especial precisão e determinabilidade. São regras de “sim ou sopas”, não se vá, sei lá, decidir que se pode passar no vermelho quando não vierem carros. Aqui, novo tombo. Além de diluir a barreira entre a regra e o seu contrário, a Resolução do Conselho de Governo confia na polícia (!) para estabelecer o que é ou não é exercício físico, e é a ela que compete também determinar, na Madeira (!), onde começa e acaba a natureza.

Tudo visto, a Resolução espalha-se, com estrondo, nos alçapões da prevenção dos grandes riscos: abstrai-se das consequências do comportamento para se concentrar na proibição mecânica do próprio comportamento, e deposita na polícia – não no legislador – a autoridade para decidir onde pára a alteração da ordem, e o onde fica a infracção da lei.

Os senhores empresários me perdoem. Mas este alheamento é a raiz. Tudo o resto – a confusão, a incerteza, o desânimo, a sensação de insegurança, o ressurgimento do medo e do ressentimento, os cancelamentos nos hotéis, a incoerência, a batota, a banalização da força pública, o desgaste do Governo, a alegada “falha de comunicação”, e até um reaccionarismo perverso contra o sempre prudente uso da máscara –, tudo o resto deriva daí.

Este lamentável enredo prova, se nada mais, que algumas regras e princípios jurídicos não se inventaram por acaso. São antes o verso de tentações e erros históricos do Poder, que em seu tempo – e sempre por bondade – subverteram a lógica da ordenação social e montaram purgas, paradoxos, e outros infernos privativos.

O Governo Regional da Madeira não se estreia nestas andanças, muito menos durante a pandemia que a todos baralha e confunde. Muitos países tomaram o gosto pelo autoritarismo de emergência, e outros tantos reincidiram na aspiração antiga de decretar o bom-senso. Mas, se queremos ser excepcionais na resposta à Covid-19, convém que o sejamos também naquilo que os governos tipicamente não são.

A emendar a mão.

Fechar Menu