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Uma questão de narrativas

A narrativa que os madeirenses melhor conhecem é a do adiamento de um futuro que nunca chega

A vida política é rica na formulação de narrativas criativas que tudo justificam, sobretudo os sucessos como mérito de alguns e os insucessos como obra do alheio. Se, por um lado, a pandemia deveria ter-nos ensinado verdadeiramente a construir soluções em conjunto, o que ficou do desconfinamento político foi a capacidade de se criarem narrativas em separado - algumas até desfasadas da realidade. A pandemia provocada pela COVID-19 teve, transitoriamente, uma narrativa comum - a de que o sucesso do combate dependeria de cada um de nós e dos nossos comportamentos -, mas bastou iniciarmos o desconfinamento para cair por terra qualquer tentativa futura de união de esforços. A diferentes níveis políticos, por vezes a percepção que fica é a do delírio.

Na Região, já não se compreende qual é, afinal, a narrativa em curso. Na ausência do Presidente da República, alimentou-se a do isolacionismo, do sucesso, único, exclusivo, contra tudo e contra todos; mas, à sua chegada, foi vê-los, de mão estendida e costas vergadas, a pedirem a fotografia, a ajuda, a palavra de conforto. Na possível ausência da TAP, alimentou-se a narrativa de que a Madeira nada lhe devia, nem dela precisaria; mas, agora nacionalizada, é vê-los a exigirem mais voos que ajudem à necessária retoma económica e social. Na ausência de orçamento municipal aprovado, foi vê-los a criticarem a Câmara do Funchal por supostamente nada fazer; mas, sempre que faz, é vê-los a dizerem que afinal o mérito é de outros.

A narrativa que os madeirenses melhor conhecem é a do adiamento de um futuro que nunca chega: do adiamento do respeito pela Autonomia do poder local; do aprofundamento real da Autonomia regional; da reposição do diferencial fiscal; das políticas e dos investimentos essenciais. No lugar do combate às alterações climáticas, os madeirenses continuam a ser confrontados com atentados ambientais, como o detectado na Ribeira dos Socorridos, escondido durante mais de 30 anos; no lugar da construção do Novo Hospital, assistem a mais um adiamento, provocado por quem ajudou a gastar todos os euros possíveis noutro tipo de betão; e no lugar de um combate comum e solidário à pandemia, assistem ao desprezo e à insinuação sobre a situação que outros portugueses enfrentam.

Por mais anos que passem, por mais eleições que se enfrentem e mais narrativas que se inventem, no final do dia a realidade resume-se ao que é, não ao que gostaríamos que fosse - e não há narrativa que nos salve da dependência política, económica e social externa, qual reflexo máximo das insuficiências de uma Autonomia construída nos últimos anos entre a histeria estridente e a mão vazia estendida. Não chega apontar para fora, falar em responsabilidades externas e exigir soluções a outros, quando a História nos ensina que é uma narrativa que não resiste aos factos escrutinados. Se, por um lado, esta pandemia, como todas as provações que temos sucessivamente enfrentado e superado com sucesso, constituiu prova cabal da importância e da urgência de aprofundarmos a Autonomia que temos - não só a legalmente instituída, como, mais importante ainda, a da prática política estabelecida e que, de ano para ano, parece diminuí-la -, confirmou também o imperativo de despertarmos nas novas gerações, na nossa acção pública e colectiva, a urgência de continuarmos a trabalhar para proporcionarmos aos seguintes melhores oportunidades do que aquelas que tivemos - e tal não se fará com narrativas, chavões e reinvenções, mas com acções concretas, que resistam ao escrutínio do tempo.

Narrativas infundadas são como linhas de milhões que não chegam: ilusões transitórias que alimentam estados de alma colectivos, mas não matam a fome, nem criam futuro. Um futuro que, se construído sobre olhares igualmente enevoeirados e areias movediças, em nada será diferente do resultado de negar a existência da COVID-19 e acabar infectado pelo vírus: um choque de frente com a realidade que não muda.

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