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Do terra-planista à porta

Tocou-me a companhia da porta, estridentemente, com abuso de quem viesse intimar com a contrafé cá em casa. Olhei-o pelo visor, tipo “estou a estranhar-te, criatura”, e o gajo, chato qual catequista que nos acorda aos sábados logo cedo, insistia que a terra é plana, que Galileu e Darwin são do demónio e que o corona só vai de cloroquina. Fiz-lhe ver que não, que a quarentena é necessária e que injetar desinfetante na veia é coisa de ianque leviano, mas ele que sim (puro diálogo de surdos), que o vírus é um ataque da China e que a OMS está ao serviço do comunismo, essas coisas.

Por estas e por outras, a vacinação é necessária. Cidadãos de boa-vontade, imunizai-vos. Ainda ontem recomendei a um amigo na Cidade da Praia a leitura de “Como conversar com um fascista”, de Márcia Tiburi, a ver se tirava da cola um lunático das ilhas que lhe enchia os cornos com Olavo de Carvalho e com frases mal lidas de Karl Popper. Mas, dizia-vos, já a perder a paciência, sempre a conversar pelo interfone, pus-me a cantar Grândola a ver se o fascista dava à sola e ainda escuto o gajo a tocar a companhia do primeiro direito. Da próxima vez, leva o gajo com o Povo unido, jamais será vencido. Vivendo e aprendendo nestes tempos de pandemia.

Vivendo e aprendendo com a pastorícia. O pastor (estou a ver Alberto Caeiro perante o espetáculo do mundo) recolhe o seu rebanho com os lobos a se digladiarem. Só que, no meio de tanto rei indo nu, há uns (que, lúcidos, ousam substantivos) e outros (que, deslumbrados, só adjetivam). Os argumentos esdrúxulos (e as citações estafantes) a configurarem o sexo dos anjos, num tempo em que há coisas mais a sério e há imperiosas urgências no portão das nossas ilhas. O pastor sabe quando é a briga dos energúmenos. Assim, manda o bom senso que a gente veja tais lobos de esguelha. Pelo visor. Sem nunca abrir a porta para que não entremos em “O Processo”, de Franz Kafka.

Respondo à minha amiga. O racismo, o machismo e a homofobia estão mais ou menos presentes em todos os lados do espectro ideológico. Se num campo a segregação é mais primária, explícita e visceral, noutro campo ela é mais envergonhada, insidiosa e escondida. Na fimbria de um discurso emancipador, manhosamente mascarado de fraternidade. Por isso, a descolonização ontológica e mental é o único lugar de chegada que importa e esta viagem de libertação é o nosso desafio histórico e existencial.

Não nos podemos furtar às realidades ambíguas que vivemos, mesmo em regimes políticos constitucionalmente democráticos, nem nos podemos, com muitas veias ainda abertas, desistir dos questionamentos críticos. Pensemos sempre “com as nossas próprias cabeças”, como propusera (este sim, revolucionário e um dos pais de abril) Amílcar Cabral.

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