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Qual das duas a mais bela?

Como não podia deixar de ser, à Igreja do Colégio, no Funchal, reservei um lugar de eleição

Por obra do acaso – e também do interesse que dedico às colecções de cromos de arquitectura – tive a sorte de conseguir colar, na caderneta da minha memória, quase todas as fachadas das basílicas que os Jesuítas ergueram pelo mundo. Das ruínas de São Paulo, em Macau, ao Gesù de Roma – a igreja mater da Ordem – conheço a maioria delas. Como não podia deixar de ser, à Igreja do Colégio, no Funchal, reservei um lugar de eleição: a capa da caderneta. No início deste ano, porém, tive a oportunidade de visitar a Catedral Basílica de Salvador da Bahia, isto é, pude finalmente colar o cromo que me faltava para completar a colecção. E foi aí que a tormentosa dúvida me assaltou: qual das duas a mais bela?

Vejamos: ambas foram concebidas no século XVII em obediência ao sóbrio cânone maneirista que os jesuítas portugueses adoptaram aquém e além-mar. Iniciada em 1629, a obra do Funchal prolongou-se pelo século XVIII enquanto a de Salvador se consumou, no essencial, entre 1657 e 1672. A fachada da basílica baiana não consegue, todavia, ombrear com a madeirense. A pedra-do-reino com que foi construída – lioz cortado e aparelhado na região de Lisboa – resulta desmaiada e inexpressiva sob a áspera luz dos trópicos. Falta-lhe o vivo contraste entre o brilho da cal e o basalto negro, arrancado a ferros ao chão da Ilha. Como se não bastasse, em Salvador, coroando a mole de lioz aparelhado, postou-se um raquítico frontão entre volutas e torres atarracadas.

Entremos. É na sumptuosa nave central da igreja baiana, flanqueada por oito capelas comunicantes, que a pedra-do-reino adquire, finalmente, toda a sua eloquência. Nada parece perturbar a solene coesão arquitectónica deste espaço. Nem o resplendor das magníficas talhas douradas, que ardem contidamente na penumbra das capelas. Eis o espírito de Deus – o interior da igreja – mais rico que o exterior, que simboliza apenas o Seu corpo – como prescreve, aliás, a receita de Cataneo. Com menores dimensões e sem a colossal abóbada de berço em madeira pintada, a nave de São João Evangelista, no Funchal, fica aquém – não consegue competir, nem no tamanho nem na sumptuosidade, com tão portentoso e sóbrio esplendor.

Passemos à sacristia. A planta é rectangular e rigorosamente simétrica. A uma escala mais contida, somos aqui surpreendidos pela mesma esplêndida regra. Não há comparação possível com a do Funchal que, ao lado desta, me parece acanhada e rústica. Na parede oposta ao imenso arcaz em jacarandá, abrem-se seis janelas de sacada sobre o azul sereno da Bahía de Todos os Santos, com a Ilha de Itaparica no horizonte. Por momentos julgamo-nos em Lisboa – o Mar da Palha rebrilhando ao longe no ardor de uma tarde de verão... Fecho os olhos e recordo, com desgosto, o degradante espectáculo que se avista da janela da sacristia da igreja do Colégio: o Pátio dos Padres ao abandono, com a bela arcaria entaipada e o chão revestido pelo vil alcatrão. Qual das duas a mais bela? Não me consigo decidir.

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