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Havemos de ser felizes

Adiamos, sucessivamente, a nossa vida, sem reais garantias de obtermos as bem-aventuranças num futuro incerto, antes ou depois da morte

Parece haver uma regra geral que faz com que passemos a vida a lembrar o passado, a esquecer o presente e a imaginar o futuro.

Apesar de toda a gente saber que a única dimensão temporal que realmente existe é o momento presente que logo, logo, se transforma em passado, muitas vezes, esquecemo-nos de o viver, apegados ao que já não é ou desejosos do que ainda não existe e, por isso, em bom rigor, absolutamente contingente.

Somos permanentemente encorajados a viver no futuro, desde a mais tenra idade: a creche deve preparar-nos para a pré-primária, a pré-primária para a primária, esta para o secundário que nos deve servir de trampolim para a universidade que, por sua vez, será a chave para um bom emprego.

Mas, quando conseguimos o tal emprego, devemos trabalhar afincadamente para sermos promovidos, para ter uma carreira, para amealhar algum dinheiro, para viajar, para ter uma casa, um carro, constituir família, garantir uma reforma digna...

A família permite-nos perpetuar a espécie, perpetuar os genes, ter filhos. Quando os filhos forem adultos, então teremos tempo para nós.

Amanhã, sim. Mais tarde, sim. Havemos de ter sorte, vamos conseguir o que sonhámos, possuir o que idealizámos, obter o que merecemos.

No futuro iremos ser felizes.

Passamos a vida a pensar: “temos que fazer sacrifícios agora, para termos uma vida melhor”.

A sociedade incita-nos, a maior parte das grandes religiões baseia o seu apostolado no pressuposto de que devemos portar-nos bem, fazer sacrifícios e almejar uma recompensa eterna...depois da morte.

A velha história do castigo e recompensa. Do céu e do inferno.

Adiamos, sucessivamente, a nossa vida, sem reais garantias de obtermos as bem-aventuranças num futuro incerto, antes ou depois da morte.

Procrastinamos a nossa vida. Esquecemo-nos, tantas vezes, de fruir os momentos. Os bons e os maus momentos da nossa vida quotidiana, embalados pela quimera de um futuro de que não conhecemos nem podemos garantir a existência.

E, pior do que isso, transmitimos isso aos nossos filhos, aos nossos amigos, aos nossos alunos, aos nossos colegas, aos nossos colaboradores.

Depois, quando chegamos ao tal emprego, quando os filhos estão criados, quando já fizemos a nossa carreira, quando nos reformamos, mesmo quando conseguimos garantir “um bom futuro”, surge, frequentemente, no espírito de quem sistematicamente adiou a sua vida, a suspeita, muitas vezes difusa, mas presente, de que podia ter sido melhor viver intensamente os momentos presentes embora sem descurar a necessária cautela.