Protesto deve ganhar altitude
A lógica da oferta e da procura não pode transformar um direito num luxo permanente
A polémica em torno da sobretaxa da TAP nas viagens entre a Madeira e o continente, em plena época de Natal e Ano Novo, terminou com o anúncio de que a companhia “recuou”. Não duvidamos, apesar de o episódio ter contornos familiares. A TAP opta por uma decisão comercial que penaliza os madeirenses, o Governo Regional reage e bem com indignação pública, e dias depois surge um desfecho “positivo” que permite a ambas as partes reclamarem vitória, embora o problema essencial fique por resolver: Os preços das viagens continuam elevados e o acesso aéreo à Região continua dependente de transportadoras que operam segundo lógicas de mercado e não de coesão territorial.
Classificar de “recuo” o que aconteceu é generoso. A TAP apenas retirou uma sobretaxa extraordinária, mas não reviu a sua política tarifária, nem garantiu previsibilidade ou justiça nos preços futuros. Ou seja, usou o episódio para gerir percepções públicas, neutralizar danos reputacionais e corrigir tacticamente a imagem à boleia da pressão política e mediática.
O problema é que esta reacção cíclica assente na indignação sazonal, no protesto público e na trégua aparente só dura até à próxima crise tarifária, o que transforma o debate sobre o preço das viagens num momento mais simbólico do que efectivo e qualquer alegado “recuo” em mera pausa estratégica num problema que permanece estrutural.
Neste contexto, resumir o problema dos custos das ligações aéreas à Madeira a uma birra da TAP é simplista e perigoso. De facto, quando companhias de baixo custo, que operam em regime de mercado livre, praticam tarifas semelhantes ou até superiores às da transportadora de bandeira, fica exposta a falência estrutural do modelo de mobilidade aérea da Região.
Daí que a recente polémica tenha também revelado uma imprudência atroz de todos quantos protestaram apenas contra a TAP, imputando-lhe culpas exclusivas, como se Ryanair e easyJet, as companhias que simbolizam o “mercado livre” e a “concorrência saudável”, não estivessem a praticar também tarifas que, em muitos casos, ultrapassam os 400 euros, o limite máximo elegível estipulado pelo Subsídio Social de Mobilidade.
As companhias limitam-se a ajustar preços à procura, sem qualquer obrigação de serviço público. E assim o subsídio criado para garantir acessibilidade e coesão, acaba por servir de almofada financeira às transportadoras, que sabem que o Estado reembolsa parte do custo aos residentes, não tendo por isso um incentivo real para conter tarifas.
O resultado é perverso. O subsídio que devia corrigir desigualdades acaba por legitimar preços artificiais. Nenhuma transportadora perde. Quem paga a diferença é o contribuinte. O alienado Governo da República, que deveria fiscalizar o equilíbrio do sistema, limita-se a pagar a conta. A tribo contestatária regional foca a indignação na TAP e evita discutir o modelo no seu todo e, pior, poupando sem explicação as companhias que não protegem os passageiros quando há inoperacionalidade no aeroporto da Madeira ou quando cancelam voos sem a mínima explicação. Se por azar, a brincadeira ocorrer no Natal há gente que só vai chegar à Região no Carnaval.
O preço da mobilidade aérea não é apenas um número para esfregar na cara dos ilhéus inconformados e para entreter alguns protagonistas da política ávidos de palco. É um indicador elucidativo, mesmo que cruel, da qualidade da coesão territorial em Portugal. É um sinal dos tempos e do eterno centralismo, sobretudo quando reflecte a visão desfocada das ultraperiferias, a mesma que sem pudor classifica a mobilidade dos madeirenses como luxo e não como uma obrigação do Estado. É uma desconsideração tácita de quem ainda não conseguiu resolver assimetrias e não percebeu que quando viajamos por necessidade entre a Madeira e o continente pagamos a tarifa imposta, mas também a forma como o país organiza o seu território e como pratica a continuidade constitucional.
Assim, o ponto crítico não é apenas saber quem mais sobe o preço, quem é ágil na gestão dos algoritmos e quem melhor trabalha a lei da oferta e da procura. O drama está num outro patamar, o mesmo que combina a permissividade reguladora que teme as ameaças dos operadores, com a leviandade avessa à estratégia regulatória consistente e com o subsídio que corrige o sintoma e o aumento do preço, mas legitima o modelo que tanto agrada às companhias que sabem que, quando as tarifas sobem, o contribuinte cobre a diferença.
Como o que deveria ser um mecanismo para garantir coesão está adulterado, a discussão tem, portanto, de ganhar altitude. Em vez de lutas episódicas com uma ou outra companhia e de atribuições de culpas individuais, importa definir um modelo de serviço público para a mobilidade interna, com rotas e frequências contratadas com regras básicas de acessibilidade e plafonds tarifários, combinado com mecanismos de competição que não sacrifiquem o direito constitucional à mobilidade. Se tamanha empreitada não for executada, as tarifas abusivas vão continuar a punir estudantes, trabalhadores e famílias, os subsídios manter-se-ão desajustados e as indignações sazonais estão garantidas. A verdade incómoda é que já não há ‘low-cost’ para a Madeira, mas apenas um custo alto institucionalizado.
Se dúvidas houver, vamos a factos. Às 11h de ontem, numa simulação para voos de ida e volta Lisboa/Madeira a 19 de Dezembro e Madeira/Lisboa a 4 de Janeiro, os preços obtidos nos sites das companhias, já com bagagem de porão incluída, eram estes:
easyJet - 637, 44 euros
TAP - 569, 68 euros
Ryanair - 560,46 euros