O Cadáver Embalsamado da Mobilidade
1. O Cadáver Embalsamado da Mobilidade
[Seis anos de engano servido em rodízio por PS e PSD]
O Subsídio Social de Mobilidade é um cadáver com maquilhagem, um defunto que cheira a mofo (mas não, não é mofo, é só o cheiro do poder a empurrar-nos promessas podres) sentado à mesa de jantar como se respirasse ainda, e os ministros, PS e PSD, há seis anos a servirem-no em travessas douradas, a dizer que está vivo, vejam bem como respira, e nós, feitos de tolos, a acreditar. A Lei n.º 105/2019, (lembram-se?), era a salvação, a palavra final, a solução definitiva. Um caixão com fita vermelha, enterrado sem missa, sem padre, sem quem rezasse por ela.
E depois, em 2025, a grande novidade, o brinquedo novo: uma plataforma digital, o Santo Graal da modernidade, “em Junho”, disseram eles , “Junho, senhores passageiros (chá, café ou laranjada), em Junho pagam só o valor final”. Junho veio, claro que veio, como sempre vem, e o que apareceu foi nada, só mais uma data inventada, mais uma dilação, mais um calendário a arder na gaveta. Junho. E PS e PSD a rir, cúmplices, a empurrarem o embuste como quem joga à bola com um gato morto, sem pudor, sem vergonha, porque sabem que a paciência do madeirense é longa, porque sabem que a resignação também é uma forma de cativeiro.
E a vida cá em baixo? Entre os mortais? Uma família a pagar mil euros para ver a mãe no hospital em Lisboa, três bilhetes que arrancam a pele da conta bancária. Os madeirenses, a pedirem licença para serem portugueses como quem pede esmola à porta da igreja, a mostrar papéis, recibos, cartões, provas da sua miséria organizada. Os emigrantes a trazer na mala documentos ridículos para convencer um Estado que não acredita em ninguém e que acha, que como ele, anda metade do mundo a enganar a outra metade. O subsídio que devia ser ponte é muralha, que devia ser alívio é chicote.
E as desculpas: “complexidade técnica”, “integrações em tempo real”, como se fosse preciso enviar um foguete para Saturno. Mas não, é só descontar o apoio no bilhete, simples, banal, ridiculamente simples. E é por isso mesmo que nunca acontece: porque o Estado não quer, porque o Estado vive da promessa, não da solução. O truque é o adiamento, o truque é o engano, o truque é a poeira nos olhos.
E enquanto isso, dão-nos esmolas: cinco euros a menos no preço máximo, como quem atira moedas ao pedinte da esquina. E mantêm os tectos: 400 para a Madeira, 600 para os Açores. Se custar 700, azar o teu, paga a diferença. “Coesão territorial”, chamam-lhe. Coesão até ao limite da paciência das folhas de cálculo.
O Governo proclama modernidade, mas continua a mandar-nos para as filas dos CTT, proclama justiça social, mas deixa o risco no colo dos passageiros. Promete plataformas digitais, mas entrega carimbos, filas, balcões. É farsa, farsa em estado puro.
E a verdade, nua, sem maquilhagem, é esta: o Subsídio Social de Mobilidade nunca foi um direito. Sempre foi esmola, prato de sopa com regras, tigela controlada por limites e portarias, com o cidadão reduzido a pedinte agradecido. E há seis anos que PS e PSD nos servem esta sopa fria, esta fraude com cheiro a bafio, e dizem-nos para comer calados.
No fim, sobra a poeira. Poeira nos olhos, poeira na boca, poeira nos bolsos. Seis anos de vigarice, de mentira oficial, de embuste repartido. E nós, sempre à espera de Junho, sempre à espera da plataforma, sempre a pagar mais do que devíamos. Em Junho, vai ser em Junho. Só não nos disseram de que ano.
2. A Terra Que Odeia os Políticos e Reza ao Estado
[O retrato de uma devoção servil que alimenta a própria máquina que se diz odiar]
Os políticos são todos iguais, ouvi há pouco e pela enésima vez, é um som que se repete nas ruas estreitas da ilha, nas paragens de autocarro dos Horários, na tasca onde as moscas circulam de copo em copo. Todos iguais, corruptos, inúteis, uma corja, repete a boca cheia de dentes amarelos e restos de carapau no entre dentes. E logo depois a mesma boca abre-se para pedir ao Estado que resolva, que proteja, que dê um subsídio para a conta da luz, para a doença da mãe, para a bilha de gás, para o filho que não encontra emprego. Odeiam os homens e ajoelham-se perante a máquina. Odiar os padres e adorar o altar, cuspir no confessionário e acender uma vela à Virgem.
Sempre foi assim. Salazar com a mão levantada a dizer que o povo é criança, precisa de disciplina, precisa de silêncio, precisa de obediência, a sombra do ditador de óculos a cair sobre gerações. O PREC com bandeiras vermelhas, palavras de ordem pintadas à pressa nas paredes, nacionalizações que cheiravam a ferrugem e promessas que não pagavam salários, a multidão em êxtase, como se a abundância viesse de decretos e não do trabalho. A democracia a seguir, essa tutela disfarçada de modernidade, a mesma voz paternal a repetir: nós cuidamos de vós, não vos mexais. Não cidadãos. Súbditos. Sempre súbditos.
O madeirense não acredita em si próprio. Acredita no carimbo. No papel com timbre. No JORAM mesmo não sabendo que existe. No despacho com assinatura ilegível. A segurança é um documento. Sempre foi. No hospital onde se espera anos por uma cirurgia, o conforto está no recibo carimbado da inscrição. Na escola onde se falha, o alívio é uma declaração oficial. O funcionário não mexe sem ordem. O cidadão não age sem autorização. A empresa respira por tubos de subsídio. A vida depende de uma assinatura. Odiamos os políticos, veneramos o Estado. Não percebemos que são a mesma coisa.
O Estado são eles. Os homens que se insultam no café. Amar o Estado e odiar os políticos é amar o carrasco e odiar a corda. Amar a cozinha e odiar o cozinheiro. Contradição de bêbado, mas cómoda. Dá para insultar sem assumir responsabilidades. Dá para sentir-se virtuoso e protegido ao mesmo tempo.
E quanto mais falha, mais fé. A austeridade da troika a cortar salários, a rasgar pensões, a envergonhar o país diante de credores estrangeiros. E logo a multidão a pedir mais Estado social, mais braço que o ampare. A pandemia: ruas desertas, medo, máscaras, sirenes, salários pagos por decreto, empresas presas ao soro do Orçamento. Todos a insultar os políticos, todos a agradecer ao Estado a esmola. A saúde em colapso, as listas de espera como epitáfios. E o grito: precisamos de mais. Nunca menos. Nunca risco. Nunca responsabilidade.
As eleições são um ritual cansado. Em teoria, corrige-se o erro votando noutros. Na prática, todos iguais. Assim se insulta o actor e se preserva o palco. Deputados desprezados, Assembleia intacta. Ministros odiados, ministérios intocáveis. Autarcas insultados, a máquina autárquica inteira. O círculo que nunca se fecha porque não tem princípio nem fim.
E o liberal olha para isto e vê o veneno. A devoção ao Estado é fatal. Dá vida ao paternalismo, justifica a intrusão, legitima o abuso. O Estado cresce porque é desejado. Os políticos distribuem favores porque dá votos. O eleitor, cansado, dependente, continua a sustentar a besta que odeia. É um casamento de velhos: os cônjuges detestam-se, mas morreriam sozinhos.
O país reduz-se a esta farsa: insultar quem governa e pedir mais governo. Amaldiçoar os políticos e implorar ao governo, que mais não é do que uma agremiação desses mesmos e detestáveis políticos. Um povo infantil, de mãos estendidas, com medo do risco, medo da autonomia, medo de si mesmo.
E só mudará quando se perceber que o Estado não é uma ideia abstracta, não é uma nuvem de bondade suspensa sobre nós. É feito desses homens que insultamos. Amar o Estado é amar os políticos que chamamos corruptos. Só mudará quando se cortar o cordão, reduzir a máquina, descentralizar, deixar espaço à responsabilidade individual. Só mudará quando se tiver coragem de não pedir, de não mendigar, de não esperar pelo decreto salvador. Até lá, cafés cheios de insultos, filas na Segurança Social, a mesma reza repetida sem fé mas com medo.
3. Há quatro anos, Pedro Calado surgia em cartazes maiores do que a cidade, com aquele sorriso vazio de quem nunca teve dúvidas, e atirava-nos à cara promessas como quem distribui pastilhas elásticas numa escola primária: estacionamentos subterrâneos no Colégio, praças e largos, ciclovias metafísicas, hortas verticais em prédios que choravam infiltrações, e os inevitáveis palcos para a estupidez onde ninguém queria actuar. Claro que acabei de inventar umas coisas, mas também tenho direito a isso. Calado, e o PSD, sabiam que a memória da cidade é curta, muito curta, e a histeria do anúncio substitui a decência do planeamento. Agora aparece Jorge Carvalho, que repete o truque sem o carisma de feira: transformar a doca dos autocarros do 2000 num espaço verde, debaixo de um parque de estacionamento, como se fosse possível cultivar relva onde só se semeia monóxido de carbono. Um jardim submerso, enterrado como os mortos que não reclamam. Jorge Carvalho, é uma personagem secundária deste romance falhado, dos que o leitor esquece antes de chegar ao fim do capítulo: quer ser o sucessor do Miguel Albuquerque, o velho feiticeiro do nada, o homem que passou anos a inventar futuro em visitas mendigadas a tudo o que mexe no privado e slogans de arraial. Não herda dele o brilho, herda-lhe o método: prometer qualquer coisa com voz grave e olhos semicerrados, esperando que os eleitores estejam mais distraídos do que cansados. A cidade, essa, continua à espera de um plano que não envergonhe, de uma ideia que sobreviva ao calor do dia seguinte, de um projecto que não se dissolva na humidade das paredes. Mas em vez disso dão-lhe flores de plástico, sombra e fumo, e dizem-lhe que é verde. Como se verde fosse só uma cor.